PGFN pode questionar “tese do século” após 15 de março de 2017?

PGFN pode questionar “tese do século” após 15 de março de 2017?

9 minutos de leitura

Recentemente o Estadão noticiou que a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) estava tentando recuperar parte dos créditos perdidos no julgamento da chamada “tese do século” (exclusão do ICMS das bases de cálculo de PIS e Cofins), questionando judicialmente decisões favoráveis obtidas pelos contribuintes em ações distribuídas depois de 15 de março de 2017, data do julgamento da referida tese[1].

Sendo assim, o contexto é o seguinte: em 15 de março de 2017, o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento da “tese do século”, o tema de Repercussão Geral 69 (que teve como leading case o Recurso Extraordinário 574.706/PR), firmando o entendimento de que “o ICMS não compõe a base de cálculo para a incidência do PIS e da Cofins”. Após o julgamento, a PGFN opôs embargos de declaração pedindo que o julgamento valesse apenas dali para frente, isto é, sem possibilidade de os contribuintes recuperarem créditos do passado.

Mais de quatro anos depois, em 13 de maio de 2021, o STF acolheu parcialmente os embargos de declaração da PGFN para definir que os contribuintes que distribuíram ações sobre o tema até o dia do julgamento, 15 de março de 2017, poderiam recuperar os créditos dos cinco anos anteriores à data de distribuição da ação. Já para os demais contribuintes, os créditos somente seriam válidos de 15 de março de 2017 em diante.

Tal parecer do STF – acerca dos embargos de declaração modulando os efeitos da decisão na “tese do século” – suscitou uma mudança de posição do próprio Tribunal quanto ao instituto da modulação de efeitos de julgamentos em repercussão geral. Ademais, esse parecer também inaugurou uma tendência contrária aos contribuintes, com 73,7% das teses julgadas após a “tese do século” sendo moduladas com efeitos a partir da data do julgamento, conforme aponta um estudo do site JOTA[2].

E é com fundamento nessa decisão dos embargos de declaração que a PGFN vem distribuindo, no Poder Judiciário, ações rescisórias para tentar anular os créditos anteriores a 15 de março de 2017 obtidos por contribuintes que distribuíram ações depois dessa data e conseguiram decisões judiciais favoráveis.

Discussão acerca das ações da PGFN sobre a tese do século

A princípio as ações da PGFN até fazem sentido, afinal, o STF decidiu que somente poderia recuperar créditos do passado quem tivesse distribuído ações até 15 de março de 2017.

A polêmica, porém, se refere a um requisito temporal para a distribuição de ações rescisórias, pois, em regra geral, elas somente poderiam ser distribuídas até dois anos contados do trânsito em julgado da decisão proferida nos processos dos contribuintes.

Veja então: se os embargos de declaração na “tese do século” foram julgados em 13 de maio de 2021, a PGFN somente poderia pedir a rescisão dos julgados favoráveis aos contribuintes que transitaram em julgado em até dois anos antes dessa data, ou seja, em 13 de maio de 2019. Assim, quanto mais a PGFN demorasse para distribuir as ações rescisórias, mais contribuintes ficariam a salvo.

Contudo, para “azar” dos contribuintes, o novo Código de Processo Civil (CPC), que entrou em vigor em 16 de março de 2016 (Lei 13.105/15), trouxe uma inovação nos casos de ação rescisória que não existia no Código de Processo Civil anterior: o prazo para questionar o “título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional […], ou fundado em aplicação ou interpretação […] tido pelo Supremo Tribunal Federal como incompatível com a Constituição Federal” passou a ser contado “[…] do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal” (CPC, artigo 535, inciso III, e §§ 5º e 7º).

Essa inovação, porém, não está livre de críticas.

Crítica

A crítica mais relevante é sobre a incompatibilidade entre essa “nova ação rescisória” com o princípio de segurança jurídica e o instituto da coisa julgada[3].

Para entender o que é segurança jurídica e coisa julgada, pense no sistema jurídico como um quadro. Esse esquema é útil, porque limita o sistema jurídico, coloca bordas nele, e permite a compreensão de que só vale para o sistema jurídico o que está dentro dessas bordas. E dentro dessas bordas estão as normas jurídicas, como leis e decisões. Assim, para que uma norma jurídica seja inserida dentro dessas bordas, é preciso que elas passem por um procedimento prescrito por outras normas jurídicas que já estejam dentro das bordas do sistema jurídico (por exemplo: no caso das leis, a forma de discussão, aprovação e votação prescritas na Constituição; no caso de decisões judiciais, que elas sejam proferidas por agente público investido de competência para tanto).

A segurança jurídica é a garantia de que as normas existentes dentro das bordas do sistema jurídico seguiram o procedimento prescrito para fazer parte desse sistema, e que esse procedimento e seu conteúdo só podem ser questionados levando-se em consideração outras normas específicas. E para que essa garantia seja efetivada, esses questionamentos ou têm prazo para serem realizados, ou, caso sejam procedentes, seus efeitos no tempo seriam limitados.

E uma limitação dos efeitos de questionamentos é justamente a coisa julgada. A coisa julgada é um instituto que reforça a segurança jurídica ao proteger determinadas situações de consequências futuras imprevisíveis. A proteção à coisa julgada está prescrita na Constituição (artigo 5º, inciso XXXVI) e no Código de Processo Civil, sendo definida no artigo 502 do CPC como “[…] a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso”.

Dessa maneira, tornar imutável e indiscutível uma decisão é protegê-la, é colocar sobre essa decisão ou sobre essa norma jurídica uma redoma que a protege dentro do quadro do sistema jurídico. É por esse motivo que a sua desconstituição só pode ser feita por meio de ação rescisória dentro do prazo estabelecido na lei.

A questão controversa aqui é o fato de a “nova ação rescisória” deixar esse prazo em aberto indefinidamente, fazendo com que ela fique sujeita à uma decisão futura e incerta do Supremo Tribunal Federal. Uma crítica que se faz é que essa “nova ação rescisória” do artigo 535, inciso III, §§ 5º e 7º do CPC, reescreve a própria definição da coisa julgada do artigo 502 do CPC, de modo que, agora, ela deveria ser lida da seguinte forma: “denomina-se coisa julgada material a autoridade que [decorre de decisão do Supremo Tribunal Federal, ainda que futura, e] torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso [e que esteja de acordo com a referida decisão do Supremo Tribunal Federal]”.

Um parêntese aqui: esse artigo trata de créditos do “passado”, créditos dos cinco anos anteriores à distribuição dos processos com decisões favoráveis ao contribuinte, e que a PGFN tenta agora desconstituir por ação rescisória distribuída mais de dois anos depois do trânsito em julgado das decisões favoráveis.

Sobre o “futuro”, ou seja, decisões passadas que continuam a produzir efeitos, o STF já decidiu, em repercussão geral nos Temas 881 e 885, que relações dessa espécie, chamadas relações “de trato continuado” (que “se renovam” a cada período), sequer precisariam de ação rescisória para a sua desconstituição. Com isso, a decisão do STF nesses casos ficou conhecida como “relativização/flexibilização da coisa julgada”[4], e a ironia é que, nesse caso, favorável à União, não houve modulação de efeitos da decisão, diferentemente do que ocorreu na “tese do século”.

Aliás, voltando para a “tese do século”, o que aconteceu em relação a ela foi que os contribuintes que distribuíram ação após 15 de março de 2017 e conseguiram decisões para recuperar crédito do passado jogaram conforme as regras do sistema jurídico na época, e o fizeram sob a expectativa de segurança jurídica e a proteção da coisa julgada. Porém, mais de quatro anos depois, esses contribuintes viram as regras do jogo mudar e não puderam se apoiar na proteção da coisa julgada. Pensando nisso, qual segurança jurídica tiveram, então?

Essa é a discussão que a PGFN tem levado a juízo com suas ações rescisórias, nas quais cita decisões de tribunais a seu favor. Por fim, as dúvidas que ficam é se esses processos levarão em consideração a incompatibilidade entre essa “nova ação rescisória” e a segurança jurídica, o tempo que levará para essas discussões terem uma resolução final e quais serão as consequências disso para a segurança jurídica. A impressão que fica só reforça a frase que já virou jargão: “no Brasil, até o passado é incerto”[5].

Considerando todos esses pontos, a BLB Auditores e Consultores, especializada em assegurar confiabilidade e segurança aos negócios e controles de seus clientes, conta com profissionais capacitados e especializados no âmbito tributário, podendo certamente auxiliar você e sua equipe na obtenção de soluções específicas para o seu negócio. Entre em contato conosco!

Autoria de Pedro Magalhães
Consultor Tributário
BLB Auditores e Consultores

Revisão de Heitor Cardoso
Advogado Contencioso Tributário
BLB Auditores e Consultores

[1] https://www.estadao.com.br/economia/coluna-do-broad/uniao-entra-com-centenas-de-acoes-para-anular-creditos-tributarios-da-tese-do-seculo/.

[2] https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/modulacao-de-efeitos-stf-decide-em-909-dos-casos-favoravelmente-ao-fisco-11082023.

[3] Outras críticas questionam a noção de “paridade de armas” (CPC, artigo 7º), porque o Código de Processo Civil disponibiliza essa “nova ação rescisória” apenas à Fazenda Pública, e não ao contribuinte, aumentando o desnível já existente na relação entre Poder Público e particular no contexto do processo civil.

[4] Para ler a crítica sobre o tema em questão publicada aqui no Blog da BLB, acesse o link: https://blbauditoreseconsultores.com.br/blog/coisa-julgada-materia-tributaria-decisao-stf/.

[5] https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/510284/noticia.html?sequence=1.

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