Decisão do STF sobre a coisa julgada em matéria tributária

Decisão do STF sobre a coisa julgada em matéria tributária

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No julgamento conjunto, sob o sistema de repercussão geral, dos Recursos Extraordinários (RE) 949.297 (Tema 881) e RE 955.227 (Tema 885), o Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que ainda que um contribuinte tenha ganhado na Justiça o direito de não pagar determinado tributo, ele perderá automaticamente o seu direito caso o STF, mesmo tempos depois, entenda que a cobrança é devida.

O STF entendeu também por não modular os efeitos da sua decisão, o que significa que o contribuinte deverá voltar a fazer os pagamentos após a nova decisão, sob pena de cobrança pelo ente competente (Receita municipal, estadual, distrital ou federal – os Fiscos).

Os pagamentos e a cobrança, porém, só deverão ser feitos a partir do ano seguinte ao da decisão, se ela for sobre impostos, ou a partir de 90 dias, caso a decisão seja sobre contribuições.

No caso concreto decidido pelo STF, algumas empresas, como a Braskem, haviam conseguido nos anos 90 o direito de não pagar a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). Porém, em 2007 o próprio STF validou a cobrança, de forma que desde então as empresas deveriam ter voltado a pagar a contribuição. Outras empresas conhecidas e em situação semelhante são o Grupo Pão de Açúcar e a Samarco.

Vale lembrar que, apesar do julgamento e da publicação de seu resultado, a íntegra da decisão e dos votos ainda não foi disponibilizada.

Tese definida sobre coisa julgada

A tese aprovada para os casos foi a seguinte, já acompanhada de comentários entre colchetes:

As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade [as decisões do STF tomadas em processos individuais sem repercussão geral], anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo [relações que “se renovam” a cada período]. 2. Já as decisões proferidas em ação direta [ADI, ADC, ADO ou ADPF] ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações [de trato sucessivo, que “se renovam” a cada período], respeitadas a irretroatividade [não pode haver cobrança de período anterior à decisão em ação direta ou em repercussão geral que interrompe os efeitos das decisões transitadas em julgado nas relações de trato sucessivo], a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo [proferida a decisão em ação direta ou repercussão geral, a cobrança em relação à decisões individuais contrárias pode ser feita a partir do ano seguinte, se se tratar de imposto, e a partir de noventa dia, se se tratar de contribuições].

O que é preciso saber para compreender a decisão como um todo?

A tese definida traz diversos conceitos complexos e com definição controvertida no âmbito do Direito. Os principais são: coisa julgada, controle de constitucionalidade e relações de trato sucessivo.

E para que este artigo possa informar tanto profissionais do direito tributário quanto leigos no assunto, tais conceitos serão explicados a seguir de forma direta.

Coisa julgada

No nosso Direito, coisa julgada é o nome que se dá quando uma decisão de mérito, uma decisão sobre o objeto, o tema principal do processo, não está mais sujeita a recurso, o que torna essa decisão imutável e indiscutível.

O que isso significa é que a decisão de mérito não pode mais ser discutida nem dentro do mesmo processo (coisa julgada “formal”), nem em outro processo (coisa julgada “material”).

Isso soa “definitivo demais”, não? Mas existem alguns porquês importantes para tanto.

Uma forma de explicar seria falando de sistema e normas jurídicas. Para ficar num exemplo clássico – não necessariamente adequado, mas útil –, pense num quadro. Esse quadro será o “sistema”. Dentro dele imagine diversos pontos. Esses pontos serão as “normas jurídicas”. Entre esses pontos estão a Constituição, as leis, os decretos, as portarias, as decisões judiciais, os contratos, entre tantos outros. Todos eles interagem uns com os outros em relações de hierarquia (uns são superiores em relação aos outros). E todos eles têm uma natureza diferente – no fundo, nem todos seriam pontos; mas mesmo assim seria possível classificá-los em categorias gerais.

Para sair dessa abstração, volte para a tal da decisão de mérito. Ela seria um ponto (uma “norma jurídica”) dentro desse quadro (o “sistema”). E a natureza dela faz com que sua forma de ponto seja diferente da forma de uma lei, por exemplo. A natureza da decisão de mérito e de outras normas jurídicas parecidas com ela se encaixa numa categoria chamada de “norma individual e concreta”.

Norma, porque ela é um ponto no quadro, uma parte do sistema. Individual porque ela se destina a pessoas, entidades, órgãos etc. definidos nela. E concreta porque ela se aplica às situações definidas nela.

Para que exista segurança (jurídica e, por que não, social também) em relação a essa norma individual e concreta, é que a ela se confere uma “autoridade”, a chamada coisa julgada, que faz dela definitiva. Essa mesma “autoridade”, além de trazer segurança e definitividade, também traz um caráter impositivo para a norma: seu conteúdo deve ser cumprido, sob pena da utilização de outros mecanismos legais para forçar o cumprimento.

Com isso, a coisa julgada “protege” a norma individual e concreta, que é uma decisão de mérito dentro daquele quadro, dentro do sistema, e dá força para que ela seja cumprida dentro desse mesmo sistema.

Mas o próprio sistema possui mecanismos para atacar a coisa julgada, como a Ação Rescisória, que pode afastar a “autoridade” dela para “rescindir” a decisão de mérito, para “quebrar” aquela norma individual e concreta que virou um ponto protegido dentro do quadro, do sistema.

No entanto, esses mecanismos como a Ação Rescisória só podem ser utilizados em casos bastante específicos e, mesmo assim, eles têm que observar um prazo predeterminado, sob pena de que para toda e qualquer decisão de mérito nunca seja conferida aquela “autoridade” da coisa julgada, e de que sem isso não haja segurança nem força “impositiva” para as decisões de mérito.

Controle de constitucionalidade

No Direito, controle de constitucionalidade é a verificação de compatibilidade entre a Constituição e os atos normativos praticados sob a sua vigência.

Lembre-se do quadro, do sistema. Tudo o que aparece lá dentro deveria ser compatível com a Constituição, de forma que sempre existirá a possibilidade de que quaisquer dos pontos dentro do quadro sejam confrontados com o ponto que representa a Constituição. E nesse confronto, nessa relação de hierarquia, a Constituição tem que sobressair, porque o pressuposto para validade do próprio quadro é que tudo ali dentro teria que ser compatível com a Constituição.

A consequência de não ser compatível com a Constituição é a questão central de toda a discussão aqui tratada. Pense: se a compatibilidade com a Constituição é o pressuposto para que as normas do sistema, os pontos do quadro, sejam válidos, então, uma vez verificada a incompatibilidade, a consequência seria que a norma contrária à Constituição não teria validade.

Mas e se essa norma contrária existiu no sistema, no quadro, por algum tempo antes dessa verificação? Nesse tempo ela por certo produziu efeitos. Como então algo que não é válido, que não poderia produzir efeitos no sistema, de fato os produziu?

Aqui, a segurança jurídica, que é norma da própria Constituição, sobressai como fundamento de validade para manutenção dos efeitos dessas normas individuais e concretas, conferindo-lhes definitividade e imposição por meio da coisa julgada.

Então a conclusão é que, apesar da contrariedade com a Constituição, essas normas jurídicas são protegidas por outros mecanismos da própria Constituição, pelo período em que produziram seus efeitos. Esses mecanismos, como é o caso da coisa julgada, dão efetividade à segurança jurídica e conferem definitividade às relações dentro do próprio sistema, estabilizando-as e promovendo um “fechamento” no sistema.

Relações de trato sucessivo

E é nesse contexto que aparece o último elemento necessário para compreender a decisão do STF: as relações de trato sucessivo e sua natureza.

Em resumo, relações de trato sucessivo são aquelas que vão “se renovando” a cada período.

Pense num tributo como a CSLL (uma contribuição), que foi o tributo discutido no caso pelo STF. A CSLL prescreve que havendo “lucro” por pessoa jurídica, ela deve aplicar sobre o valor desse “lucro” um determinado percentual e recolher o resultado desse cálculo aos cofres públicos. A cada período em que haja apuração de “lucro”, a pessoa jurídica fica obrigada à aplicação da alíquota e ao recolhimento. Portanto, de período em período essa relação “se renova”, de forma continuada.

Mas e se uma pessoa jurídica conseguir uma decisão de mérito que não está mais sujeita a recurso e que diga que a CSLL é inconstitucional e não pode ser cobrada dela?

Parênteses: todo e qualquer juiz possui competência, autoridade para avaliar a compatibilidade das normas do sistema com a Constituição. Essa avaliação por todo e qualquer juiz é chamado de controle difuso (espalhado, para facilitar) de constitucionalidade. Até mesmo o STF pode fazer esse controle em processos individuais. A diferença é que só o STF pode avaliar a compatibilidade das normas do sistema com a Constituição em definitivo. Só ele tem competência, tem autoridade para isso. E o STF poderá fazer isso de duas formas: (a) em ações específicas com esse objeto, hipótese chamada de controle direto (concentrado) de constitucionalidade; (b) ou em processos individuais em relação aos quais o STF aplique um procedimento específico chamado de “repercussão geral”, que fará com que essa decisão afete a todos em casos semelhantes.

Fechados os parênteses, voltemos para o caso da CSLL. Quando uma pessoa jurídica consegue uma decisão de mérito com coisa julgada sobre o assunto, a todo período pelo qual ela ficaria obrigada à CSLL, a decisão obtida aparece como um impedimento para que a obrigação se constitua. A decisão aqui funciona como um escudo, um repelente.

O que o STF decidiu, porém, é que essa decisão com coisa julgada somente produz o efeito de impedimento enquanto as situações que deram suporte para ela existirem. E a situação que existiu para dar suporte a tal decisão com coisa julgada era a inexistência de uma decisão do STF em controle direto de constitucionalidade ou em repercussão geral.

Logo, uma vez alterada essa situação com a decisão do STF, a decisão com coisa julgada deixaria de produzir seu efeito de impedimento a partir de então, de forma automática, independentemente daqueles mecanismos competentes para atacar a coisa julgada, como a Ação Rescisória[1].

O que vem por aí agora?

A tendência é que a decisão seja questionada em Embargos de Declaração em razão de um julgamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em 2011, que chegou a uma conclusão diversa sob a sistemática de recurso repetitivo. Trata-se do Tema 340, no qual restou definido que “o fato de o Supremo Tribunal Federal posteriormente manifestar-se em sentido oposto à decisão judicial transitada em julgado em nada pode alterar a relação jurídica estabilizada pela coisa julgada, sob pena de negar validade ao próprio controle difuso de constitucionalidade”.

Eventual questionamento, porém, não parece ser suficiente para retomar a discussão, considerando que em casos como esse a tendência é que o STJ reforme seu entendimento para adequar sua jurisprudência à do STF, que é quem possui a competência, a autoridade para decidir matérias constitucionais.

Impacto em demais teses

Importante pontuar que nem todas as teses jurídicas defendidas e patrocinadas por contribuintes podem ser impactadas pela decisão do STF. E isso porque diversas delas trazem questionamentos legais e não constitucionais, o que faz com que a competência para decidir em definitivo sobre elas seja do STJ e não do STF – e decisões do STJ não estão abrangidas pela tese firmada pelo STF.

Vale lembrar que esse foi o caso da “definição” de insumos, julgada pelo STJ no Recurso Especial (REsp) 1.221.170 (Tema 779 de recursos repetitivos), e reafirmada pelo STF como matéria legal (infracontistucional ou não constitucional) no julgamento do RE 841.979 (Tema 756 de repercussão geral).

No mais, a decisão do STF é específica, limitada para os casos em que algum contribuinte tenha conseguido decisão favorável na Justiça e, tempos depois, o STF tenha entendido diversamente em controle direto de constitucionalidade. E mesmo assim o Fisco somente poderia voltar a cobrar após a decisão do STF e respeitado o prazo de fazê-lo no ano seguinte (se for imposto) ou depois de 90 dias (se for contribuição).

O que fazer daqui em diante?

A decisão do STF repercutiu nos meios de comunicação, foi objeto de notícia pelo STF[2], nota pública pela PGFN[3], e Ofício Circular pela Comissão Monetária de Valores (CVM)[4]. O que fazer então diante desse cenário?

O que se tem é que a decisão do STF exige do contribuinte uma postura mais estratégica em matéria tributária. Isso porque a defesa de uma tese tributária na Justiça passa a exigir maior atenção do contribuinte em razão dos seguintes pontos:

  • É preciso um monitoramento frequente da existência e do andamento de discussões semelhantes à que o contribuinte possua no STF em ações direta de constitucionalidade ou com repercussão geral.
  • O contribuinte poderá se beneficiar da obtenção de decisão definitiva, com trânsito em julgado, que o dispense do pagamento de tributo, caso em que o benefício valerá até decisão contrária do STF em ação direta de constitucionalidade ou com repercussão geral.
  • Caso a decisão do STF seja contrária à decisão obtida pelo contribuinte, ele não precisará devolver os valores não pagos e somente voltará a pagar o tributo no ano seguinte à decisão do STF (em caso de imposto) e 90 dias após a decisão do STF (em caso de contribuição).
  • E caso a decisão do STF seja favorável à decisão obtida pelo contribuinte, não mudará: o contribuinte continuará a ter o direito de recuperar os valores pagos indevidamente desde os cinco anos anteriores à apresentação da ação na Justiça – vale lembrar que o STF tem decidido que, nesses casos, quem não entrou com a ação antes da decisão do STF não poderá recuperar os valores pagos indevidamente no passado.

Considerando todos esses pontos, a BLB Auditores e Consultores, especializada em assegurar confiabilidade e segurança aos negócios e controles de seus clientes, conta com profissionais capacitados e especializados no âmbito tributário, podendo certamente auxiliar você e sua equipe na obtenção de soluções específicas para o seu negócio. Entre em contato conosco!

Pedro Henrique Magalhães
Consultor Tributário
BLB Auditores e Consultores

[1] Uma provocação aqui: no artigo 502 do Código de Processo Civil (CPC), onde se lê “Art. 502. Denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso”, talvez agora seja preciso ler-se “Denomina-se coisa julgada material a autoridade que decorre da decisão do Supremo Tribunal Federal, em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso, tornando imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso que não contrarie os termos da decisão do Supremo Tribunal Federal”.
[2] https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=502140&ori=1.
[3] https://www.gov.br/pgfn/pt-br/assuntos/noticias/2023/nota-publica.
[4] https://conteudo.cvm.gov.br/legislacao/oficios-circulares/snc-sep/oc_snc_sep_0123.html.

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