Caso Americanas: reflexos de operações de risco sacado (forfait) nas demonstrações contábeis e sua presença na agro distribuição

Caso Americanas: reflexos de operações de risco sacado (forfait) nas demonstrações contábeis e sua presença na agro distribuição

12 minutos de leitura

Recentemente veio à tona na mídia o escândalo contábil envolvendo as Lojas Americanas, mais precisamente a identificação de inconsistência na apresentação das informações contábeis denominada de “forfait” ou operação de “risco sacado”.

Tal assunto foi divulgado por meio de “fato relevante” em 11 de janeiro de 2023, no qual a varejista comunicava que foram detectadas inconsistências contábeis na dimensão de R$ 20 bilhões. Dois dias depois do primeiro comunicado, a companhia efetuou um “comunicado ao mercado” informando que eventuais alterações em suas demonstrações contábeis, por conta das inconsistências citadas, acarretaram o descumprimento de cláusulas de “covenants financeiros” e “cross-default”, culminando no vencimento antecipado de dívidas da ordem de R$ 40 bilhões.

Operações de forfait na agro distribuição

Mas, afinal, o que esta operação realizada pelas Lojas Americanas tem em comum com as operações transacionadas nas atividades operacionais da agro distribuição no Brasil?

Tal operação, conhecida como “forfait” ou “risco sacado”, não é exclusiva do varejo de eletrodomésticos e demais produtos para casa, é comum em diversos segmentos, incluindo o de agro distribuição.

Com o objetivo de interpretarmos a operação de forfait, imagine uma situação hipotética de uma agro distribuição adquirindo defensivos agrícolas de um dos seus fornecedores com prazos de pagamento em 90 e 120 dias para liquidação.

A adquirente, por muitas das vezes, necessita de fôlego em seu fluxo de caixa, afinal, via de regra, na atividade da agro distribuição é normal a realização de financiamento de seus clientes (produtores rurais em sua grande maioria). Dessa maneira, suas contas a pagar junto aos fornecedores quase sempre vencem antes dos recebimentos de suas vendas, o que evidentemente causa um descasamento de caixa, provocando a necessidade de captação de recursos para o “capital de giro” de suas operações, porém sujeitos à incidência de juros como pagamento pelo serviço da dívida.

Os fornecedores, para sanar possíveis dificuldades de caixa, por muitas das vezes também precisam antecipar seus recebíveis a fim de garantir o pagamento de suas obrigações, resultando num casamento perfeito de interesses. Assim, com o intuito de “conciliarem” suas necessidades, na situação acima, ambas as empresas (compradora e vendedora) procuram um financiador da operação, geralmente na figura de uma instituição financeira (bancos) ou Fundos de Investimento em Direito Creditório (FIDC), para bancar a operação. É neste exato momento que nasce uma operação de forfait ou risco sacado.

O financiador surge como um intermediário da operação, cujo papel é avaliar a capacidade de pagamento da empresa compradora e, com base nessa análise, antecipar o pagamento para o vendedor (fornecedor). O vendedor recebe os recursos de sua venda no vencimento e resolve sua necessidade de fluxo de caixa. Em troca, a empresa compradora passa a dever diretamente para o financiador e não mais para o fornecedor, porém agora sujeita à incidência de juros pelo aluguel do dinheiro do financiador.

Nesse momento, nas demonstrações contábeis do agro distribuidor, suas obrigações de pagamento que deveriam ser feitas para o fornecedor são transferidas para o grupo contábil de empréstimos e financiamentos junto às instituições financeiras, caracterizando-se como uma operação de financiamento sujeita à ocorrência de juros.

O financiador, por sua vez, deverá cobrar diretamente da empresa compradora e possui a obrigação de informar esse endividamento ao Banco Central do Brasil (BACEN).

Observe que o fornecedor de bens e/ou serviços sai de cena com a cessão do direito creditório.

Em sua essência, tal operação representa um financiamento de compras e é denominada como “forfait”, “confirming”, “risco sacado” ou “securitização de contas a pagar”.

Fazendo um paralelo com o caso divulgado envolvendo as Lojas Americanas, o que foi identificado é similar ao exemplo acima, em que os fornecedores da varejista, em sua maioria de eletrodomésticos, para que pudessem garantir suas necessidades de caixa realizaram antecipações de seus recebíveis, e essas antecipações não foram tratadas de forma adequada nas demonstrações contábeis das Lojas Americanas. Com isso, a companhia apresentou em suas demonstrações contábeis dívidas contraídas por meio da operação de “forfait” como se ainda os credores fossem os seus fornecedores e não as instituições financeiras, o que pressupõe a ocorrência de juros.

Tecida a breve explicação sobre a similaridade da operação comum às companhias de varejo e as de agro distribuição, passamos a desenvolver mais o tema respondendo algumas perguntas afim de levar ao leitor a um entendimento mais aprofundado.

Podemos dizer que todas as operações de risco sacado podem ser consideradas como forfait?

Existe o argumento de que nas operações de risco sacado, nas quais a empresa compradora apenas aceita trocar de credor sem que haja alteração de prazo ou condição de pagamento, a essência da operação não é alterada e continua sendo de atividade operacional.

Como exemplo, o fornecedor transfere seu direito de recebimento a outra empresa do grupo, não alterando as condições negociadas.

Por outro lado, a operação de risco sacado é realizada com a finalidade de alongamento da dívida e, consequentemente, caracteriza-se como uma operação de financiamento.

Considerando o aumento na quantidade de operações de risco sacado por empresas brasileiras, a CVM emitiu o Ofício-Circular CVM/SNC/SEP nº 01/2017 (com atualizações posteriores), no qual um dos temas abordados é o tratamento contábil dessas operações.

Conforme o referido Ofício, nesse tipo de operação a empresa compradora contrata um banco e monta um esquema de antecipação dos pagamentos aos seus fornecedores. Assim, a empresa compradora deveria reconhecer um passivo oneroso junto ao banco (financiamento), em vez de uma obrigação operacional com fornecedores.

No dia a dia nos deparamos constantemente com essa operação nas empresas de agro distribuição e identificamos que em muitas oportunidades há a necessidade de adequação contábil em função de não haver controles internos capazes de identificar tais transações com a tempestividade ideal para a correta apresentação contábil dessas operações.

A pergunta que fica é:

Como classificamos adequadamente uma compra financiada (a prazo) entre atividade operacional (fornecedores) ou de financiamento (empréstimos e financiamentos)?

Para classificarmos da forma correta uma operação de forfait, temos que ponderar as seguintes questões, que devem ser analisadas de forma conjunta com outros aspectos da transação:

  1. Os juros embutidos na transação são padrões das operações com os fornecedores ou são superiores e materiais?
  2. Quem solicitou a transação foi o fornecedor ou o comprador?
  3. O prazo médio de pagamento da transação é similar ao prazo médio com outros fornecedores?
  4. O objetivo da transação é fornecer financiamento ao fornecedor ou fornecer financiamento à empresa compradora; ou ainda outro objetivo?

Enfim, podemos concluir que, para não caracterizar uma operação de forfait, a essência econômica original da transação comercial não deve ser modificada, caso contrário, provavelmente estamos diante de uma operação de forfait, arquitetada entre comprador, vendedor e banco.

Atualmente grande parte dos agro distribuidores transacionam o forfait em suas empresas, seja por meio de busca de recursos junto às instituições financeiras para que possam ganhar fôlego no caixa com o alongamento da dívida, seja com seu próprio fornecedor procurando diretamente um banco ou fundo de investimentos e oferecendo como opção para seu cliente.

Ocorre que, ao longo dos anos, percebemos que a comunicação entre os agentes não é realizada com a tempestividade necessária, o que acarreta na apresentação inadequada das demonstrações contábeis das empresas.

Na prática, em muitas oportunidades o setor contábil dessas companhias acabam não tomando conhecimento dessas transações, uma vez que são realizadas pelo setor financeiro ou diretamente por seus fornecedores e, caso não haja uma comunicação eficiente e rápida entre os setores contábil e financeiro e seus fornecedores, as demonstrações contábeis poderão ser apresentadas de forma inadequada, o que afeta fortemente os indicadores financeiros da companhia, principalmente os relacionados à medição dos níveis de alavancagem que, em algumas oportunidades, estão vinculados a cláusulas restritivas contidas nos contratos de empréstimos e financiamentos denominados “covenants”.

Quais os impactos nas demonstrações contábeis de uma possível contabilização inadequada de uma operação de forfait?

Os impactos nas demonstrações contábeis das companhias vendedora e compradora (agro distribuição), referentes à contabilização inadequada de uma operação de forfait são diversos, materiais e relevantes, os quais descrevemos abaixo:

  1. Impactos nas demonstrações contábeis da companhia vendedora: formalmente, a companhia vendedora (o fornecedor) emite uma fatura que contempla o prazo a ser financiado pelo banco, porém não reconhece em sua contabilidade a venda pelo valor presente. Consequentemente, apresenta um EBITDA
  2. Impactos nas demonstrações contábeis da companhia compradora (agro distribuidor):
  • não há reconhecimento de um passivo oneroso junto ao banco, mas o passivo de funcionamento denominado “fornecedores”;
  • apresenta o estoque inflado e a margem bruta com vendas distorcida;
  • não reconhece adequadamente as despesas financeiras em resultado;
  • não ajusta a valor presente o passivo “fornecedores”, sem a devida segregação de juros embutidos na operação a serem apropriados em resultado (CPC 12 – Ajuste a valor presente);
  • distorce os “covenants” contratuais (índice de cobertura de juros ou de endividamento oneroso, por exemplo).

Enfim, as demonstrações contábeis de ambas as companhias (vendedora e compradora) deixam de atender à condição de representação fidedigna (CPC 26 – Apresentação das Demonstrações Contábeis).

Como podemos identificar se uma companhia possui operações de forfait?

Um meio que tal operação pode ser identificada pelos administradores, auditores, bem como pelos analistas de crédito dos bancos é consultando a posição de endividamento da companhia no Sistema SCR – Sistema de Informação de Crédito do BACEN, no qual constam informações detalhadas sobre as operações contratadas.

Já o mesmo não ocorre quando a operação for contratada com FIDC, pois esses não estão obrigados a informar tal operação ao Banco Central e, consequentemente, não estarão apresentados no sistema de informação de crédito SCR BACEN. Essa limitação de informação oferece um alto nível de risco aos agentes do mercado, uma vez que se a empresa não possuir controles internos que identifiquem essas operações com tempestividade, poderá haver a não identificação da ocorrência da transação de “risco sacado”.

Para que esse risco seja minimizado, uma das alternativas utilizadas pelas empresas de auditoria é de solicitar a “resposta de circularização”, cujo procedimento consiste em enviar cartas para os gestores dos fundos de investimentos, bem como para os bancos, para que eles informem diretamente aos auditores todas operações realizadas e suas posições atuais. Dessa maneira haverá o cerceamento de todas as transações com esses agentes do mercado financeiro.

Como evidenciar as transações de compras financiadas em notas explicativas nos balanços auditados?

A agro distribuição vem se profissionalizado cada vez mais em virtude das necessidades de mercado, consolidações existentes e operações complexas nos negócios. Ao mesmo tempo, as empresas de auditoria tornaram-se fundamentais para a identificação e como fonte relevante de orientação na divulgação das transações negociais das empresas ao mercado.

Sem dúvida, um dos grandes desafios da contabilidade, com relação à evidenciação, é o dimensionamento da quantidade e da qualidade de informações que atendam às necessidades dos usuários das demonstrações contábeis.

Todas as informações evidenciadas devem ser relevantes para os usuários externos. E só são relevantes se influenciarem no processo de decisão dos investidores e credores! Logo, as não relevantes não devem ser divulgadas.

Alguns requisitos básicos, referentes às transações de compras financiadas, que devem ser evidenciados em notas explicativas às demonstrações contábeis incluem:

  • as bases utilizadas pela administração das companhias (quer seja compradora ou vendedora) para a decisão da prática da inclusão de uma instituição financeira (banco) a fim de viabilizar a “transação de forfait”;
  • as condições das negociações com os bancos, custo financeiro, utilização de limites e linhas de crédito;
  • a conclusão para a definição dos registros contábeis, entre outras informações consideradas importantes para a conclusão alcançada.

Conclusão

Vimos o conceito de uma operação de forfait e, na sequência, explanamos que nem todas as compras a prazo se enquadram na respectiva classificação.

Sem dúvida, o entendimento da essência da operação sobre a forma, é a espinha dorsal para a adequada classificação nas demonstrações contábeis das operações de compras financiadas dos agro distribuidores, ou seja, devemos ponderar se estamos diante de um passivo operacional de fornecedores ou passivo oneroso de financiamentos; e essa análise não é mecanicista ou automática, pois depende de diversas variáveis.

Ressaltamos que, independentemente da classificação contábil, ou seja, passivo de fornecedores ou de financiamentos, a companhia deve aplicar o ajuste a valor presente (CPC 12) nas compras financiadas.

Não podemos esquecer de que o entendimento das normas internacionais de contabilidade (IFRS) é um conhecimento basilar para o profissional da contabilidade, a fim de que as demonstrações contábeis sejam mensuradas, apresentadas e divulgadas adequadamente para os usuários, ou seja, para os administradores, investidores, credores, acionistas, órgãos reguladores, governo etc.

A equipe da BLB Auditores e Consultores é especialista nas aplicações das IFRS, com experiência prática em diversos clientes, oferecendo todo suporte necessário para adaptação as normas IFRS e, inclusive, nas áreas de auditoria independente;  consultorias Tributária e de Finanças e M&A.

Remerson Galindo de Souza e Robson Santesso Pires
Sócios-diretores de Auditoria Independente
BLB Auditores e Consultores

  1. Muito bom! Mas, como as Americanas passaram despercebidas? Outro caso! Foram usados vários bancos? E os principais acionistas? Não perceberam nada?

  2. parabéns pelo texto…….infelizmente na grande mídia ninguém explica direito. fantástico

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *