Para muitos contadores e auditores, uma das áreas mais polêmicas e incertas da IFRS (International Financial Reporting Standards) é a que se refere aos testes de recuperabilidade, basicamente, pelo fato de ser fundamentada em estimativas, julgamentos, avaliações e previsões de cenários possíveis de um dado negócio ou ativo.
No fim das contas, muitos desses profissionais talvez se sintam mais como se estivessem tentando ler o futuro do que efetivamente atestando algo, já que estamos falando de possibilidades de cenários que podem vir a acontecer.
Inclusive, não é raro auditores se depararem com testes de recuperabilidade e encontrarem grandes dificuldades nesse processo em razão de, em um primeiro momento, parecem satisfatórios e adequados, sem indicar qualquer traço de discrepância ou de prejuízo. Porém, muitas vezes, isso tudo não passa de uma doce ilusão, pois os dados mostram resultados completamente diferentes ao serem estudados e analisados mais profundamente, revelando problemas, como: premissas irreais, taxas de desconto equivocadas, inclusão incorreta de itens nas projeções do fluxo de caixa e assim por diante.
Levando em consideração essa intricada realidade, a discussão sobre esse tema se torna imprescindível. Mas, para isso, é preciso trazer à tona as questões relacionadas às projeções de fluxo de caixa, cuja importância e complexidade se equiparam quando o assunto gira em torno dos testes de recuperabilidade.
Por que as projeções de fluxo de caixa são tão importantes?
Resumidamente, as projeções de fluxo de caixa para os testes de recuperabilidade são cruciais por dois motivos:
- Elas são a base para determinar o valor em uso do ativo ou da unidade geradora de caixa (UGC). Isso significa que, ao definir o valor em uso, também estamos estimando quanto valor a empresa obtém do ativo ou da UGC ao usá-la ou ao consumi-la.
- Quando não há dados suficientes de mercado, as projeções de fluxo de caixa são a principal entrada no cálculo do valor justo. Assim, a diferença entre o valor em uso e o valor justo é que, neste último caso, estamos estimando os fluxos de caixa baseados no que o mercado está disposto a pagar pelo ativo ou pela UGC que está sendo analisada.
E quais são as regras por trás das projeções?
A norma IAS 36, em seu artigo 33, traz as seguintes regras básicas a serem seguidas ao se estabelecer as projeções de fluxo de caixa para o teste de recuperabilidade:
- Utilizar premissas fundamentadas e plausíveis como base para as projeções de fluxo de caixa, de modo que reflitam as estimativas administrativas em relação às condições econômicas ao longo da vida útil restante de um ativo ou de uma UGC, ao mesmo tempo que se dá maior importância às evidências externas.
- Utilizar as previsões ou os orçamentos financeiros mais recentes aprovados pela administração, conforme:
- São excluídos os fluxos de caixa futuros provenientes da reestruturação, da melhoria ou do aprimoramento do desempenho do ativo ou da UGC;
- Abarca-se o tempo máximo de 5 anos, a menos que seja possível justificar o uso por um período mais longo.
Seguindo tais regras básicas estipuladas pela IAS 36, a tendência é que essa norma contribua para a preparação das projeções de fluxo de caixa, tornando-a mais palpável e inteligível. Assim, para simplificar tudo isso, vamos resumir abaixo as principais considerações e armadilhas em relação a essas projeções.
Como definir as projeções de fluxo de caixa?
Para começar, o ponto principal a ser considerado na preparação das projeções do fluxo de caixa é o bom senso. E, sim, por mais que isso pareça um tanto abstrato ou subjetivo, pois não há um parâmetro ou um termômetro que indique e meça a razoabilidade das projeções, o mais importante aqui é ter os pés no chão em relação ao que está sendo avaliado e julgado, ou seja, é preciso ser prático e realista.
Vamos a um exemplo: imagine que você criou uma startup bem sucedida e desenvolveu um dispositivo computacional com uma tecnologia e recursos revolucionários, de modo que as suas vendas aumentaram a uma taxa de 200% a cada ano durante os últimos 3 anos. Agora, você está fazendo testes de recuperabilidade da sua UGC e decide incorporar nos seus fluxos de caixa a mesma taxa de crescimento de 200% para os próximos 5 anos, afinal, se você já atingiu esse índice nos anos anteriores, por que seria diferente no futuro?
Mas não é bem por aí. Se você estivesse ciente, por exemplo, de que ao final do quinto ano estivesse planejando vender 10 bilhões desses super computadores baseado na sua taxa de crescimento, enquanto que a população total do nosso planeta é consideravelmente inferior a esse número, chegando a quase 8 bilhões, muito provavelmente você perceberia que essa conta não fecha, não é mesmo? Definitivamente, está faltando um pouco de bom senso nesse caso ilustrado.
Isso significa que é importante ter em mente que os fluxos de caixa devem ser plausíveis e fundamentados quando se almeja preparar as projeções. E, para facilitar essa tarefa, vale a pena se atentar a essas dicas:
- Utilizar previsões e orçamentos aprovados.
- Dar mais importância às informações externas, analisando relatórios da indústria, avaliações de especialistas, previsões sobre economia etc., e tentar ser o mais consistente possível quanto a essa informação.
- Sempre verificar as previsões com dados do mercado. Se você, por exemplo, incorporou a taxa de crescimento mesmo sabendo que houve deflação prevista para a sua área, então isso significa que será preciso fundamentar tal prática para que faça sentido e seja cabível.
O que deve ser incluído ou excluído das projeções do fluxo de caixa?
A norma da IAS 36.39 define três elementos básicos que devem ser incluídos nas projeções do fluxo de caixa, que são:
- Entradas de caixa de uso contínuo do ativo, as quais incluem, principalmente, receitas geradas pelo ativo ou pela UGC.
- Saídas de caixa, incorridas para gerar as entradas de caixa de uso contínuo do ativo, que são diretamente atribuídas ou alocadas ao ativo de forma palpável e consistente. Aqui poderiam ser estimados os custos de manutenções diárias, os custos de conservação, as despesas gerais e de produção, além de itens semelhantes.
- Fluxos de caixa líquidos da cessão de ativos ao final da sua vida útil.
Contudo, é muito comum que algumas dúvidas e dificuldades surjam durante a tomada de decisão sobre se determinados itens devem ser incluídos ou excluídos das projeções dos fluxos de caixa. A seguir, vamos abordar brevemente essa questão.
1. Manutenção versus melhorias
Embora seja necessário incluir os custos de manutenção e de conservação nas projeções do fluxo de caixa, é fundamental ter em mente que esses fluxos apenas incluem itens para ativos ou UGCs em sua condição atual. Isso significa que nem a saída a ser incorrida, a fim de melhorar ou aprimorar o desempenho do ativo, nem qualquer entrada resultante de ativos aprimorados deve ser incluída nas projeções.
Se, por um lado, NÃO se deve reconhecer nenhuma melhoria em relação à despesa do capital, por outro, deve-se reconhecer as despesas de reposição e de manutenção para se conservar a capacidade do ativo. Contudo, não podemos ignorar que, em alguns momentos, é um tanto quanto complicado e desafiador distinguir as despesas de manutenção das despesas de melhorias, sendo necessário lançar mão de algum tipo de julgamento e do bom senso na hora de fazer essa diferenciação.
Dessa maneira, é preciso estar atento à existência de duas exceções que nos permitem reconhecer o aumento da despesa de capital nas projeções do fluxo de caixa, sendo elas:
- Ativo em andamento: se um capital específico já foi investido na produção de um ativo, mas esse item ainda não foi concluído, deve-se incluir, portanto, todas as saídas de caixa esperadas necessárias para que esse ativo esteja pronto para ser usado ou vendido, como determina a IAS 36.42.
- Reestruturação: se uma empresa se comprometer com a reestruturação de acordo com a IAS 37, então será possível incluir os resultados desse procedimento nas projeções de fluxo de caixa. Mas, para isso, é preciso atender a certas condições, estabelecidas pela IAS 37, visando concluir aquilo que foi comprometido a se reestruturar.
2. Fluxos de caixa em moedas estrangeiras
Estar sujeito a fluxos de caixa em moedas estrangeiras, relacionados a um ativo ou a uma UGC que está sendo analisada, geralmente engloba uma série de complicações. Contudo, principalmente por conta da globalização e de países com impostos e custos mais atrativos, essa situação costuma ser bem mais comum do que parece.
Para ilustrar essa questão de forma mais clara, imagine que uma empresa brasileira produz seus itens tendo o real como sua moeda funcional, de modo que a maioria das saídas de caixa também serão nessa mesma moeda. Porém, essa empresa vende todos os seus produtos apenas para dois clientes, cujas moedas correntes são o dólar e o euro.
Levando em consideração o caso acima, surge a seguinte dúvida: como se deve incluir as entradas de caixa previstas em dólar e em euro nas projeções do fluxo de caixa incorridas em real? Para responder a essa pergunta, é importante, primeiro, listar algumas etapas cruciais, prescritas na IAS 36.54:
- Estimar as saídas de caixa na moeda de transação e não converter as receitas previstas para a moeda funcional. Pensando novamente no exemplo de cima, todas as receitas em dólar serão incluídas como saídas de caixa em dólar e o mesmo se aplica quando a moeda for o euro. Aqui é interessante alertar sobre as taxas de inflação. Quando estamos estimando os fluxos de caixa em uma moeda estrangeira, é preciso ter cuidado em relação à incorporação da taxa de crescimento e à taxa de inflação apropriadas para uma dada moeda. Não é difícil encontrar empresas que se esquecem dessa regra e acabam aplicando a mesma taxa de crescimento a todos os fluxos de caixa, independentemente da moeda.
- Usar a taxa de desconto correta. É fundamental ter em mente, por exemplo, que o ambiente econômico dos Estados Unidos é diferente do Mercosul e da Zona do Euro, de forma que tanto os resultados quanto as taxas de juros e de descontos também serão distintos.
- Converter o valor presente dos fluxos de caixa em moeda estrangeira para a moeda funcional usando a taxa à vista na data do teste de recuperabilidade.
3. Encargos entre empresas
Outra situação frequente é quando uma companhia faz vendas ou compras intragrupo e precisa incluir fluxos de caixa dessas transações nas projeções. Nesses casos, é fundamental sempre incluir tais transações a valores estimados de mercado com alguns ajustes para descontos ou outros itens, uma vez que isso reflete as “condições normais de mercado”.
4. Contas a receber e contas a pagar
Em geral, NÃO se deve incluir os fluxos de caixa futuros relacionados à liquidação de contas a receber, de contas a pagar e de créditos tributários nas projeções. O motivo pelo qual nada disso deve ser feito é para que se possa evitar a ocorrência da contagem dupla.
Contudo, se for por uma questão de praticidade, pode-se incluir a liquidação desses balanços nos fluxos de caixa, mas, para que isso funcione, é preciso ser consistente e incluir a quantidade de contas a receber, de contas a pagar e de créditos tributários no valor contábil da UGC que está sendo analisada. Sendo assim, se existir algum passivo que precisa ser considerado ao se determinar o valor recuperável da UGC, então é necessário incluir as saídas de caixa relacionadas a esse passivo nas projeções de fluxo de caixa.
Por exemplo, imagine que o seu foco é realizar um teste de recuperabilidade de uma usina hidrelétrica. Para isso, é preciso incluir as saídas de caixa do passivo de desativação na conta, já que esse passivo está vinculado à usina.
Até aí tudo bem, certo? Mas e como fica a amortização de empréstimos? Bom, geralmente não se inclui a amortização se o passivo de empréstimo foi excluído da UGC analisada. Além disso, também é preciso ignorar os pagamentos de juros, porque o custo do seu capital é feito com deduções.
5. Valor terminal
Quando se está analisando um ativo com uma vida útil indeterminada ou superior ao período previsto é preciso incluir o valor terminal nas projeções de fluxo de caixa. Aliás, é comum que o valor terminal represente mais do que 50%, às vezes até mesmo 80%, do valor presente total das projeções de fluxo de caixa, por isso, é extremamente importante obtê-lo da maneira mais correta possível.
Em muitos casos, o valor terminal é apenas a receita líquida que se espera obter da venda de um ativo ao final da sua vida útil, especialmente quando esse período bate com o final das previsões do fluxo de caixa. Mas, em outros casos, o valor terminal é a estimativa do que se obteria para os fluxos de caixa após o período previsto.
Para ilustrar isso de forma mais clara, vamos imaginar a seguinte situação: você administra um negócio e não sabe ao certo quando terminará de gerar os fluxos de caixa, mas consegue fazer previsões confiáveis para os próximos 5 anos. Agora, só resta saber como abranger o período para além dos 5 anos e por quanto você venderia esse negócio após esses 5 anos.
Ao se refletir sobre essas questões, é importante trazer à tona os dois métodos mais comuns para se calcular esse valor de venda:
- Múltiplo de saída: refere-se a um múltiplo do fluxo de caixa dos acionistas no último ano de projeções.
- Perpetuidade: ao considerar a projeção do último ano, aplica-se a fórmula de perpetuidade a ela. O resultado seria uma projeção indeterminada do fluxo de caixa em um dado número. Na realidade, aqui está sendo calculada a perpetuidade crescente como uma série de pagamentos periódicos que crescem a uma taxa proporcional por um período de tempo ilimitado.
Levando em conta esses dois métodos, pode haver grandes diferenças no valor terminal quando calculado de um jeito ou de outo. E a razão para que isso aconteça é simples: como você está desistindo do risco do negócio ao vendê-lo, o seu valor terminal pode ser mais baixo quando se aplica o múltiplo de saída.
Sendo assim, é fundamental usar um método consistente com a estimativa da administração em relação ao destino da empresa no momento em que se realiza o teste de recuperabilidade.
6. Taxas de desconto para o teste de recuperabilidade
A taxa de desconto usada ao direcionar as projeções de fluxo de caixa para o seu valor presente deve:
- Ser uma taxa anterior à incidência dos impostos;
- Refletir as avaliações atuais de mercado em relação ao valor do dinheiro ao longo do tempo;
- Incorporar os riscos específicos de ativos para os quais as estimativas do fluxo de caixa futuro não foram ajustadas.
De forma prática, os seguintes recursos podem ser utilizados:
- Taxa de juros de mercado incorporada nas transações atuais de mercado para ativos semelhantes, ou
- Custo Médio Ponderado de Capital (CMPC ou WACC, em inglês) de uma entidade listada com um único ativo ou uma carteira com potencial de serviço semelhante e riscos para o ativo em análise, ou
- Substitutos, tais como:
- Seu próprio CMPC;
- Sua própria taxa de empréstimo incremental;
- Outras taxas de empréstimo do mercado.
Diante do que foi exposto acima, é preciso estar atento para incorporar todos os riscos necessários que não foram incluídos nos fluxos de caixa e vice-versa. Não se pode incorporar o mesmo risco às taxas de desconto e também aos fluxos de caixa, caso contrário ocorrerá a contagem dupla. Além disso, é importante usar a taxa antes dos impostos, embora algumas vezes elas sejam definidas após a incidência desses tributos.
Por fim, vale lembrar que alguns fluxos de caixa podem exigir o uso de diferentes taxas de desconto, como ocorre quando se tem fluxos de caixa em uma moeda estrangeira ou quando os fluxos de caixa possuem riscos distintos. Isso significa que seria mais apropriado usar, por exemplo, o CMPC para ativos de baixo risco, como edifícios, mas, caso estejam sendo analisados ativos mais arriscados, como marcas ou startups, talvez seja necessário ajustar a taxa de desconto para um risco mais alto.
E quantos cenários são necessários para se fazer as previsões de fluxo de caixa?
Às vezes, ao auditar testes de recuperabilidade em algumas empresas, é comum se deparar com uma única projeção de fluxo de caixa. Embora isso possa aparentar uma possível falta de zelo ou atenção, a realidade é que, nessa área, nem tudo consiste apenas em questões contábeis, pois como auditor é fundamental estar ciente e entender a psicologia humana.
Isso significa que, por vezes, pessoas de negócios tendem a ser excessivamente otimistas e, com isso, a estratégia de administração de que lançam mão inclui perspectivas muito positivas em relação ao desempenho futuro nas projeções de fluxo de caixa. E a menos que a administração conte com um excelente profeta que, no passado, provou ser capaz de fazer previsões plenamente confiáveis, essa abordagem é considerada um tanto arriscada, não sendo de fato significativa.
Obviamente, ninguém espera que a administração faça esse papel de profeta ou vidente apto a ler o futuro, mas se, anteriormente, suas previsões não tiveram tanta precisão, talvez seja hora de incluir mais do que apenas um cenário de projeções de fluxo de caixa. E, para isso, é fundamental observar as previsões feitas há 3 anos e compará-las com os resultados atuais para sondar o quão precisas foram.
Uma forma interessante de se preparar uma projeção de fluxo de caixa é contemplando três cenários diferentes: um muito otimista, outro pessimista e um terceiro que considere um panorama de que tudo acontecerá conforme o esperado. A partir daí, é preciso ponderar esses fluxos de caixa de acordo com suas probabilidades de se concretizarem e calcular os fluxos de caixa esperados.
Ou, uma alternativa – que acreditamos não ser a mais indicada ou simples –, é se basear na abordagem tradicional, que visa incorporar os riscos e as incertezas às taxas de desconto. Mas se ainda restar alguma dúvida quanto às projeções do fluxo de caixa nos testes de recuperabilidade, a equipe de consultores especializados do Grupo BLB Brasil estará apta e pronta para te atender. Entre em contato!
Raphael Bloch Belizario
Associado da Divisão de Finanças e M&A do Grupo BLB Brasil
Ótima abordagem sobre o tema!