Em 12 de dezembro de 2023, foi publicada a Lei n. 14.754, tratando acerca da tributação de aplicações em fundos de investimento no País e tributação de renda auferida por pessoas físicas por meio de aplicações financeiras, entidades controladas e trusts, todas com origem no exterior. Trata-se de matéria anteriormente regulamentada pela Medida Provisória (MP) n.º 1.171 de 2023, cuja vigência teve fim em 27 de agosto de 2023, sem que houvesse conversão do texto em lei ordinária.
Pretende-se apresentar aqui, de forma objetiva, unicamente os principais aspectos da nova Lei ligados à figura do trust no Brasil, instituto que começa a engatinhar no âmbito do ordenamento jurídico nacional.
Nos termos inovadores da MP n. 1.171, a Lei n. 14.754/2023 acrescenta à legislação brasileira uma definição legal do trust e de seus elementos constitutivos. Isso porque, até o momento, tratava-se de modalidade contratual não regulamentada no Brasil, considerando que o nosso país não é signatário da Convenção de Haia, de 1985, acordo internacional que reconheceu o instituto em questão. Não obstante, desde 2022 há um Projeto de Lei em tramitação no Congresso Nacional (PLP145), cujo objeto é a lei aplicável ao trust, em relação à sua eficácia e ao seu tratamento tributário no país.
O trust é uma entidade comparável a uma fundação, porém não possui personalidade jurídica. Os bens providenciados pelo instituidor depositante (settlor) aos beneficiários podem ser reversíveis ou não, sendo administrados por um terceiro (trustee) conforme regras estabelecidas anteriormente.
Em síntese, o trust consiste em uma modalidade contratual regida por lei estrangeira que disciplina uma relação entre três partes:
- Settlor (instituidor)
- Trustee (administrador do trust)
- Beneficiary (beneficiários)
Aqui, o settlor constitui o trust com o trustee. Ou seja, por meio do trust é conferida aos bens e/ou aos direitos a característica de patrimônio separado e autônomo, desprovido de titular. Ao mesmo tempo, ao trustee são atribuídas a organização e a administração em prol de um beneficiário que, por sua vez, receberá os frutos e, até mesmo, em algum momento, a posse, o usufruto ou a propriedade dos bens e/ou dos direitos.
Pode-se dizer que o trust consiste em um patrimônio compartilhado entre o trustee, o qual possui a propriedade formal, e os beneficiários, que receberão os frutos. Dessa forma, o patrimônio está protegido de credores tanto do instituidor quanto dos beneficiários.
A Lei em questão estabeleceu a tributação do IRPF sobre os rendimentos dos bens e dos direitos que constituem o trust. Para tanto, com fins de determinar o sujeito passivo da obrigação tributária, o texto considera que os bens permaneçam sob a titularidade do instituidor (settlor) mesmo após o estabelecimento do trust (art. 10, I, Lei n. 14.754/23).
Tal determinação deve ser mantida ainda que esses bens estejam localizados no exterior – tendo lá, inclusive, a sua origem – e que tenham sido objetos do trust, cuja característica principal consiste na autonomia patrimonial dos bens e dos direitos junto à figura do trustee. Assim os bens e os direitos passariam à titularidade do beneficiário na ocorrência do falecimento do instituidor ou no momento em que esse último distribuir ao beneficiário os bens, de acordo com o que ocorrer primeiro (art. 10, II, Lei n. 14.754/23).
Aqui, contudo, a lei inova ao informar que a transmissão ao beneficiário poderá ser reputada ocorrida em momento anterior ao falecimento do beneficiário ou à distribuição ao beneficiário, caso o instituidor abdique, em caráter irrevogável, do direito sobre parcela do patrimônio do trust (art. 10 §1º).
Por distribuição de tais bens e direitos, nos termos da Lei, entende-se qualquer ato de disposição de bens e direitos objeto do trust em favor do beneficiário, tal como a disponibilização da posse, o usufruto e a propriedade de bens e direitos (art. 12º, V, da Lei n. 14.754/2023). Isso significa que, ocorrendo a distribuição dos bens/direitos aos beneficiários por ato inter vivos, a transmissão ostenta a natureza jurídica de doação a título gratuito, a partir de 1º de janeiro de 2024.
Neste ponto, por um lado, é possível argumentar que a Lei, assim como a MP antes dela, traz maior segurança jurídica ao confirmar que as distribuições dos bens e dos direitos dos trusts configuram-se como doações ou transmissões causa mortis. E por outro, concomitantemente, abre caminho para a instituição do Imposto sobre Transmissão de Causa Mortes e Doação (ITCMD) de competência dos respectivos estados brasileiros e do Distrito Federal.
No que se refere à consequência da indicação da doação e do falecimento como origem de distribuição dos bens ao beneficiário, é possível considerar que a renda por ele auferida é isenta de tributação do IRPF nos termos do art. 6º, XVI da Lei n.º 7.713/88. Em síntese, os rendimentos oriundos de bens/direitos do trust serão tributados na pessoa de seu titular (instituidor ou beneficiário), desconsiderando-se a transferência dos mesmos ao trustee.
Por exemplo, no caso de o trust possuir aplicações financeiras no exterior, como depósitos bancários (art. 3º, I, da Lei n. 14.754/23), os rendimentos auferidos (juros, por exemplo) serão tributados na pessoa de seu titular conforme indica o § 1º do art. 2º:
art. 2º, § 1º Os rendimentos de que trata o caput deste artigo ficarão sujeitos à incidência do Imposto sobre a Renda das Pessoas Físicas (IRPF), no ajuste anual, à alíquota de 15% (quinze por cento) sobre a parcela anual dos rendimentos, hipótese em que não será aplicada nenhuma dedução da base de cálculo.
Contudo, há de se observar que a variação cambial de moeda estrangeira em espécie será sujeita à incidência do IRPF a partir do limite de alienação de moeda no ano-calendário equivalente a US$ 5.000,00 (cinco mil dólares americanos).
Vale lembrar que tais rendimentos deverão ser lançados também pelo titular na Declaração de Ajuste Anual (DAA).
Conforme mencionado acima, no tocante à questão da titularidade do trust, ao contemplá-la vinculada ao instituidor ou ao beneficiário, a Lei acabou por desconsiderar um traço essencial à caracterização do instituto, qual seja, a autonomia dos bens e dos direitos, qualificada pela transferência do patrimônio ao trustee.
Ademais, a indicação de que o falecimento do instituidor gere a consequente transferência automática da titularidade do patrimônio ao beneficiário, sem qualquer ressalva, também passa a desconsiderar, em um primeiro momento, a possibilidade de previsão diversa constante da escritura do trust (trust deed) e da carta de desejos (letter of wishes). Afinal, o instituidor pode deixar uma previsão expressa de que os bens não passariam ao beneficiário quando do seu falecimento, mas apenas em um momento posterior a essa ocorrência.
A partir da adoção da normativa da Lei, que traduz verdadeira desqualificação do trust, torna-se possível argumentar a revogação do instituto, uma vez que é desconsiderado o seu traço essencial. Assim, ao tributar rendimentos dos bens e dos direitos do trust, da mesma forma que o faz com as aplicações financeiras e entidades controladas, todos, diga-se, com origem no exterior, a Lei abre espaço para o debate acerca da bitributação envolvida neste cenário. Trata-se de fenômeno manifestado quando dois entes tributantes (neste caso, a República Federativa do Brasil na figura da União e o Estado estrangeiro em que estão localizados os bens do trust) cobram dois tributos sobre o mesmo fato gerador.
Por envolver a questão relativa à soberania dos Estados, uma lei brasileira não pode impedir que outro país tribute a renda que já foi taxada no Brasil, bem como, por óbvio, não abrirá mão de tributar renda que já sofreu incidência do Imposto de Renda no Estado estrangeiro. Contudo, é possível que haja entre os Estados acordos internacionais de bitributação, prevendo que haverá, no Estado B, isenção de tributo incidente em virtude de um mesmo fato jurídico já taxado no Estado A, ou, ainda, a compensação total ou parcial dos tributos quando já pagos na origem.
A título de exemplo, pode ocorrer de dois Estados possuírem acordo de reciprocidade tributária, através do qual, em linhas gerais, compensa-se o valor já taxado a título de Imposto de Renda em um Estado, cobrando-se apenas a diferença quando da segunda tributação. De qualquer maneira, é importante analisar criticamente as negociações internacionais entre o Brasil e o Estado estrangeiro que possui regulamentação nacional do trust.
Nesse sentido, cabe pontuar também que em 11 de março de 2024 foi instituída a Instrução Normativa n. 2.180 da Receita Federal do Brasil que regulamenta os arts. 1º ao 15 da Lei n. 14.754/2023, estando dentre estes as disposições relativas ao trust. Tanto a Lei quanto a a IN abordam a possibilidade de deduzir do IRPF o imposto de renda pago no país de origem dos rendimentos, desde que atendidos, alternativamente, um dos requisitos:
- Previsão de compensação em acordo, tratado ou convenção internacional formalizado com o país de origem dos rendimentos, para fins de se evitar a dupla tributação; ou
- Existência de reciprocidade de tratamento no tocante aos rendimentos produzidos no país.
Nessa linha, as normas apresentam algumas restrições para fins de dedução:
- Impossibilidade de dedução quando o imposto sobre a renda no exterior for passível de reembolso, restituição, ressarcimento ou compensação no exterior, sob qualquer forma.
- Não é possível deduzir o imposto pago no exterior em anos-calendários posteriores ou anteriores;
- Não é possível utilizar o imposto de renda o imposto em virtude de uma aplicação financeira no exterior para deduzir o IRPF por ventura incidente sobre o rendimentos de outra aplicação financeira, ou sobre o lucro ou dividendo de uma entidade controlada.
- A dedução não poderá exceder a diferença entre o IRPF calculado com a inclusão do respectivo rendimento e o imposto devido sem a inclusão.
A IN em questão também prevê, na mesma linha da Lei n. 14.754/2023, a possibilidade do instituidor ou beneficiário requisitar ao trustee que disponibilize recursos financeiros e informações necessárias a fim de possibilitar o pagamento do imposto e cumprimento de obrigações tributárias no País.
As normativas, inclusive, obrigam o instituidor, se ainda vivo, ou os beneficiários, caso tenham conhecimento do trust, a providenciarem em até 180 (cento e oitenta dias) a contar da publicação da Lei em dezembro de 2023, a alteração da escritura do trust ou da respectiva carta de desejos, para nela fazer constar redação que obrigue, de forma irrevogável e irretratável, o atendimento pelo trustee das disposições estabelecidas na Lei e na Instrução Normativa que a complementa.
Ademais, ainda que não aborde diretamente sobre a tributação de grandes fortunas, a Lei acaba por gerar reflexos nessa área, considerando que, estatisticamente, a criação de trust se dá por instituidores que detêm patrimônio considerável, a ponto de viabilizar o uso dessa estrutura jurídica internacional.
Ainda, vale ressaltar que se faz necessária a atuação legislativa da União a fim de possibilitar a cobrança do ITCMD pelos estados brasileiros e pelo DF quando da distribuição dos bens e dos direitos ao beneficiário do trust, uma vez que é de sua competência, mediante a Lei Complementar, dispor sobre questões gerais relativas ao direito tributário na competência concorrente que divide com os estados brasileiros e o DF (art. 24, § 1º da CF/88). Até a publicação da referida lei, o STF já possui julgados com orientação de que não será possível a cobrança do ITCMD nos termos indicados pela Lei n. 14.754/2023, sem que haja lei complementar da União que disponha sobre o tema.
Nesse sentido, o Recurso Extraordinário de n.º 851.108 (RE 851.108/SP), tema 825 da repercussão geral, no qual a interpretação do STF é pela vedação aos estados brasileiros e ao Distrito Federal a instituição do ITCMD, sem que haja a lei complementar da União autorizando e orientando a cobrança, nos termos do disposto no art. 155, § 1º, III da CF/88.
Por fim, é importante frisar que o trust é um instrumento legal estreitamente ligado a planejamentos sucessórios no exterior, de ampla utilização na busca pela sucessão patrimonial ainda em vida. Isso deve-se, principalmente, pelo fato de não haver incidência de tributação quando da transmissão do patrimônio para a administração pelo trustee, ou para os beneficiários. Inclusive, essa isenção foi atualmente abalada pela Lei no que diz respeito aos brasileiros que busquem se valer de tal instituto, nos termos da norma publicada pela Presidência da República.
Assim, ainda que não consista em uma figura de presença constante em planejamentos sucessórios e patrimoniais no Brasil não deixa, considerando a necessidade de que os trabalhos desenvolvidos lidem com rendimentos de bens localizados no exterior, de marcar presença considerável em projetos com intento de realizar sucessões em vida.
Com isso, a maioria dos dispositivos da Lei passará a ter efeitos a partir de 1º de janeiro de 2024, embora, antes disso, ela passará por uma análise no Congresso Nacional, ato que deverá ocorrer até meados de setembro, considerando os prazos constitucionais. Durante esse trâmite, é possível que a LeiP seja rejeitada ou aprovada, com ou sem modificações.
Diante de um cenário favorável à tributação sobre aspectos que envolvam o trust nos planejamentos sucessórios, faz-se necessária a atuação de um corpo profissional especializado com institutos de origem internacional, como o trust.
Está interessado em saber mais sobre esse assunto? A BLB conta com uma equipe de Consultoria Societária e Patrimonial especializada na elaboração e na execução de planejamento sucessório e patrimonial, podendo prestar assessoria sobre esse e outros temas relacionados.
Autoria de Bruno Chiarella
Consultor jurídico e societário
Divisão Societária e Patrimonial da BLB Auditores e Consultores
Revisão de Rodrigo Barbeti
Sócio-diretor de Consultoria Tributária, Societária e Patrimonial e M&A
* Conteúdo atualizado em 26 de abril de 2024.