A mensuração do valor justo é uma prática antiga. Antes mesmo do surgimento da moeda as pessoas já realizavam trocas comerciais por meio do escambo e, consequentemente, enfrentavam a questão de definir o valor de algo para realizar as transações.
Ao longo do tempo, essa necessidade permaneceu, especialmente quando um comprador quer saber quanto vale um ativo ou negócio, uma informação essencial para sua decisão.
Para fins contábeis, o valor justo só é considerado como tal quando as “regras contábeis” específicas são seguidas. Caso essas regras não forem cumpridas, a mensuração não pode ser chamada de “valor justo”.
Esse aspecto é importante, uma vez que a expressão “valor justo” é frequentemente empregada por profissionais da área empresarial, possuindo, portanto, uma vasta gama de sentidos distintos no mercado.
Inicialmente, o conceito de valor justo na Contabilidade começou a ser aplicado quando uma entidade possuía moedas estrangeiras conversíveis. Depois, foi estendido para valores a receber e a pagar em moedas estrangeiras.
A primeira aplicação do conceito para itens não monetários ocorreu na avaliação dos estoques de ouro das mineradoras. A ideia era que esperar pela venda para mensurar a receita não fornecia informações rápidas e adequadas. Por isso, adotou-se a prática de avaliar o estoque de ouro pelo valor de mercado assim que estivesse pronto para venda.
Com o tempo, esse método foi aplicado a diversos produtos, como minerais, vegetais e animais.
Normalização contábil no Brasil
A partir de 1995, com a Instrução CVM nº 235/95, a CVM passou a exigir que as empresas de capital aberto divulgassem, em nota explicativa, o valor de mercado de seus instrumentos financeiros (um tipo específico de valor justo). No entanto, essa exigência não representou uma grande mudança, pois a Lei das S.A. (Lei nº 6.404/76) continuava a obrigar o uso da regra do custo para esses instrumentos financeiros, aplicando o critério de “custo ou mercado, dos dois o menor” no caso dos ativos.
Somente com a Lei nº 11.638/07, que introduziu as normas internacionais de contabilidade (IFRS) no Brasil, foi possível vislumbrar uma alteração nessa prática. Em 2011, o IASB publicou a norma IFRS 13 – Mensuração do Valor Justo, desenvolvida em conjunto com o FASB.
No Brasil, o CPC emitiu, em 2012, o Pronunciamento Técnico CPC 46 – Mensuração do Valor Justo. Um ponto muito importante é que o CPC 46 define como deve ser feita a mensuração do valor justo, exigida ou permitida por diversos outros Pronunciamentos Técnicos do CPC.
Em outras palavras, o CPC 46 cria uma estrutura única para a mensuração do valor justo, mas não decide quando ou onde essa mensuração deve ser aplicada. São os outros pronunciamentos, como os que tratam de ativos biológicos, instrumentos financeiros e combinações de negócios, que definem quais itens devem ser avaliados pelo valor justo.
Uma vez que entendemos a origem do valor justo, a próxima etapa é definirmos o que é valor justo.
Qual a definição de valor justo?
O CPC 46 (IFRS 13) define valor justo como sendo o “preço que seria recebido pela venda de um ativo ou que seria pago pela transferência de um passivo em uma transação não forçada entre participantes do mercado na data de mensuração.”
Isto significa que o valor justo reflete o valor que o mercado atribui a um ativo ou passivo, levando em conta as condições reais e atuais do mercado, e não uma situação de venda forçada ou em circunstâncias excepcionais.
Basicamente, a norma deixa claro que o valor justo é o preço de venda de um ativo, ou seja, o valor de saída. Isso é contrário do valor de entrada, que representa o custo de aquisição.
Dito de outra forma, o valor de entrada de um ativo é o que custa para adquiri-lo, como o custo histórico ou de reposição. Já o valor de saída é o que se espera receber ao vender o ativo, como o preço de mercado ou o valor presente dos fluxos de caixa futuros.
Para calcular o valor justo, conforme o CPC 46, considera-se o valor esperado em uma venda realizada em condições normais de mercado. Em muitos casos, o preço de um mercado ativo é a melhor referência, porém, essa informação nem sempre está disponível. Esse é o nosso principal desafio, pois poucos itens possuem esse tipo de cotação. Sempre que o preço de um ativo ou passivo idêntico não for observável, será necessário utilizar técnicas de avaliação, as quais abordaremos mais adiante.
Em síntese, o valor justo será desenvolvido (construído) com base em uma transação hipotética de venda do ativo (ou transferência do passivo), considerando a perspectiva dos agentes de mercado. Isso implica o uso de premissas típicas que esses agentes utilizariam para definir o preço do ativo, priorizando o máximo possível de inputs observáveis.
O que são os inputs?
Para o CPC 46 inputs são “informações”, premissas que seriam utilizadas por participantes do mercado ao precificar o ativo ou o passivo, incluindo premissas sobre risco, como, por exemplo:
- risco inerente a uma técnica de avaliação específica utilizada para mensurar o valor justo (por exemplo, um modelo de precificação); e
- risco inerente às informações da técnica de avaliação.
Como fazer a mensuração do valor justo na Contabilidade?
Em linhas gerais, quando a entidade efetua a mensuração a valor justo ela deve considerar os seguintes itens:
- o objeto da mensuração;
- a transação e o preço;
- os participantes do mercado;
- o melhor uso possível (highest and best use) do ativo;
- a técnica de avaliação adequada para a mensuração.
Objeto da mensuração
O objeto da mensuração é o que está sendo mensurado, ou seja, a mensuração do valor justo é aplicada a um ativo ou passivo em particular.
Assim, ao determinar o valor justo, a entidade deve considerar as características do ativo ou passivo, desde que os participantes do mercado também levem essas características em conta ao precificá-los na data de mensuração. Exemplos dessas características são:
(a) a condição e a localização do ativo;
(b) restrições, se houver, para a venda ou o uso do ativo.
O impacto dessas características na mensuração pode variar conforme a forma como os participantes do mercado as consideram.
Transação e preço
O valor justo de um ativo ou passivo deve ser mensurado em uma transação normal, ou seja, não forçada e em condições normais de mercado.
O CPC 46 estabelece ainda que, para a mensuração do valor justo, deve-se considerar o mercado principal, que é aquele com maior volume e atividade para o ativo ou passivo.
Caso não exista um mercado principal, a mensuração será baseada no mercado mais vantajoso, que maximiza o valor recebido ou minimiza o valor pago, considerando custos de transação e transporte.
O preço utilizado para mensurar o valor justo será o preço observado no mercado principal ou, se não houver, o estimado por outra técnica de avaliação.
Mesmo que não exista um mercado ativo, a norma prevê que o valor justo seja mensurado por estimativa, levando em consideração as condições de mercado na data de mensuração.
Participantes do mercado
O CPC 46 determina que a entidade deve mensurar o valor justo de um ativo ou passivo com base nas premissas que os participantes do mercado utilizariam, assumindo que eles agem em seu melhor interesse econômico.
Não é necessário identificar participantes específicos, mas sim considerar as características gerais dos participantes do mercado, levando em conta: (a) o ativo ou passivo, (b) o mercado principal ou mais vantajoso e (c) os participantes do mercado com quem a entidade faria uma transação nesse mercado.
Melhor uso possível (highest and best use) do ativo
A mensuração do valor justo de um ativo não financeiro leva em consideração a capacidade do participante do mercado de gerar benefícios econômicos utilizando o ativo em seu melhor uso possível (highest and best use) ou vendendo-o a outro participante do mercado que utilizaria o ativo em seu melhor uso.
O melhor uso possível de um ativo não financeiro leva em conta o uso do ativo que seja fisicamente possível, legalmente permitido e financeiramente viável, ou seja:
- Fisicamente possível: considera as características físicas do ativo, como localização e tamanho.
- Legalmente permitido: leva em conta restrições legais, como regras de zoneamento.
- Financeiramente viável: avalia se o uso gera receita suficiente para justificar o investimento.
Técnica de avaliação adequada para a mensuração
As técnicas de avaliação são ferramentas para determinar o valor justo de um ativo ou passivo. O objetivo é encontrar o preço que seria recebido pela venda de um ativo ou pago pela transferência de um passivo em uma transação não forçada entre participantes do mercado na data de mensuração. É importante lembrar que a técnica é apenas um meio, e o valor justo depende das premissas usadas.
A entidade deve usar técnicas de avaliação adequadas e informações suficientes para mensurar o valor justo, maximizando dados observáveis e minimizando dados não observáveis. As técnicas de avaliação se dividem em três abordagens:
- Abordagem de mercado;
- Abordagem de custo; e
- Abordagem de receita.
A abordagem de mercado utiliza preços e outras informações relevantes geradas por transações de mercado envolvendo ativos, passivos ou grupo de ativos e passivos idênticos ou comparáveis (ou seja, similares), como, por exemplo, um negócio.
A abordagem de custo reflete o valor que seria necessário atualmente para substituir a capacidade de serviço de ativo (normalmente referido como custo de substituição/reposição atual).
A abordagem de receita converte valores futuros (por exemplo, fluxos de caixa ou receitas e despesas) em um valor único atual (descontado). A mensuração do valor justo reflete as expectativas de mercado atuais em relação a esses valores futuros.
Essas técnicas de avaliação incluem, por exemplo:
- técnicas de valor presente;
- modelos de precificação de opções, como a fórmula de Black-Scholes-Merton ou modelo binomial (modelo de árvore), que incorporem técnicas de valor presente e reflitam tanto o valor temporal quanto o valor intrínseco da opção;
- o método de ganhos excedentes em múltiplos períodos, que é utilizado para mensurar o valor justo de alguns ativos intangíveis.
De forma resumida, as técnicas de avaliação podem ser representadas na figura abaixo:
Ah, você achou fáceis as técnicas de avaliação de valor justo, pois parecem tão simples, não é? Só que não! Na prática, essas técnicas são tão complexas que geralmente são deixadas nas mãos dos especialistas em Finanças e M&A. Afinal, quem melhor para lidar com esses cálculos complexos do que os economistas, com toda a sua expertise em Valuation?
Uma vez definidas técnicas de avaliação, a próxima etapa é a coleta de dados para o cálculo, ou seja, conhecermos a hierarquia de valor justo.
Hierarquia de valor justo
Para aumentar a consistência e a comparabilidade nas mensurações do valor justo e nas divulgações correspondentes, o CPC 46 estabeleceu uma hierarquia de valor justo, ou seja, uma classificação em três níveis as informações (inputs) aplicadas nas técnicas de avaliação utilizadas na mensuração do valor justo.
Vamos agora detalhar os três níveis de informações utilizados, mostrando como cada um difere em relação ao tipo de dados empregados na mensuração.
Informações de Nível 1: são preços cotados (não ajustados) em mercados ativos para ativos ou passivos idênticos a que a entidade possa ter acesso na data de mensuração.
Informações de Nível 2: são informações que são observáveis para o ativo ou passivo, seja direta ou indiretamente, exceto preços cotados incluídos no Nível 1. As seguintes informações se incluem no nível 2:
- preços cotados para ativos ou passivos similares em mercados ativos;
- preços cotados para ativos ou passivos idênticos ou similares em mercados que não sejam ativos;
- informações, exceto preços cotados, que sejam observáveis para o ativo ou passivo, como, por exemplo: (i) taxas de juros e curvas de rendimento observáveis em intervalos comumente cotados; (ii) volatilidades implícitas; e (iii) spreads de crédito;
- informações corroboradas pelo mercado.
Informações de Nível 3: são dados não observáveis para o ativo ou passivo.
A hierarquia de valor justo dá a mais alta prioridade a preços cotados (não ajustados) em mercados ativos e a mais baixa prioridade a dados não observáveis (informações de Nível 3).
Exemplos práticos de mensuração para cada hierarquia
- Um exemplo de mensuração no nível 1 seria o de uma ação de uma empresa de capital aberto negociada na B3 (Bolsa de Valores do Brasil), que tenha alta liquidez. Nessa situação, o preço de fechamento da ação em um determinado período é utilizado para calcular seu valor justo. Isso mostra que, nesse cenário, o cálculo do valor justo é direto, sem grandes dificuldades ou interpretações subjetivas.
- Já um exemplo de mensuração no nível 2 seria o valor de estoque de produtos acabados em um ponto de venda varejista. Para estoque adquirido em uma combinação de negócios, utiliza-se como referência o preço de venda no varejo ou no atacado, ajustado para refletir diferenças de condições e localização. O objetivo é que o valor justo reflita o preço que seria obtido na venda para outro varejista que completaria as vendas. A mensuração do valor justo pode partir do preço de varejo ou atacado, escolhendo-se aquele que exigir menos ajustes subjetivos.
- Por fim, um exemplo de mensuração no nível 3 seria o valor de uma “unidade geradora de caixa”, ou seja, uma estimativa baseada em previsões financeiras, como fluxos de caixa futuros, elaboradas com os dados internos da própria empresa. Isso ocorre quando não há informações externas disponíveis que indiquem premissas diferentes que os participantes do mercado poderiam usar.
Em nosso artigo Como mensurar o valor justo de ativos do agronegócio?, apresentamos um exemplo prático do método do fluxo de caixa descontado, aplicado na atividade agrícola.
De forma resumida, a figura a seguir apresenta a hierarquia do valor justo, acompanhada de exemplos práticos de avaliação:
Agora que vimos a hierarquia do valor justo, veremos como evidenciar em nota explicativa todo o conceito que vimos até o momento.
Divulgação (apresentação) das demonstrações contábeis
Importante ressaltar que um dos grandes desafios da Contabilidade, com relação à divulgação, é o dimensionamento da quantidade e da qualidade de informações que atendam às necessidades dos usuários das demonstrações contábeis. Ou seja, todas as informações relevantes e que influenciarem no processo de decisão dos investidores devem ser divulgadas; e as informações não relevantes não devem ser apresentadas, conforme diretrizes da OCPC 07.
Isto posto, o CPC 46 destaca a importância de uma divulgação detalhada e transparente em nota explicativa sobre a mensuração do valor justo, especialmente para os Níveis 2 e 3, devido à subjetividade envolvida.
É essencial que todas as premissas e itens que utilizaram a base de mensuração do valor justo sejam claramente divulgados, a fim de que os usuários das demonstrações contábeis compreendam os efeitos dessas mensurações nos resultados e na situação patrimonial da empresa.
As exigências mínimas que a entidade deve divulgar são, resumidamente, as seguintes:
- Técnicas de avaliação e razões para mensurações de valor justo.
- Nível da hierarquia de valor justo (Nível 1, 2 ou 3).
- Transferências entre níveis da hierarquia e suas razões.
- Descrição das técnicas de avaliação e dados utilizados, especialmente para Níveis 2 e 3.
- Conciliação dos saldos iniciais e finais para mensurações de Nível 3, detalhando mudanças durante o período.
- Processos de avaliação utilizados pela entidade.
- Sensibilidade das mensurações de valor justo a mudanças em dados não observáveis.
Mensuração do valor justo é marco na Contabilidade
Embora o valor justo seja uma prática antiga e “nova” para a Contabilidade, procuramos descrever didaticamente a norma, porém uma leitura minuciosa deve ser feita.
Neste artigo, buscamos apresentar os conceitos fundamentais do valor justo conforme o CPC 46 (IFRS 13). Embora a prática de avaliar o valor justo remonte a transações comerciais antigas, como o escambo, foi somente recentemente, que esse conceito foi formalmente incorporado aos padrões contábeis.
Historicamente, a técnica contábil tem evoluído para refletir melhor o valor dos ativos e passivos, e o valor justo representa um marco importante nessa trajetória, ao proporcionar uma visão mais realista e atualizada das transações econômicas.
Embora o conceito e a mensuração do valor justo sejam amplamente compreendidos pelos profissionais de contabilidade, a maior complexidade surge na aplicação dos cálculos classificados na terceira hierarquia de valor justo. Nessa categoria, os dados são não observáveis, exigindo estimativas baseadas em projeções financeiras, como fluxos de caixa futuros, o que demanda a colaboração de especialistas, como economistas, familiarizados com Valuation, combinação de negócios, entre outros. Esses profissionais desempenham um papel fundamental ao apoiar os contadores nesses cálculos complexos.
A equipe do Grupo BLB é altamente especializada na aplicação das IFRS, com vasta experiência prática em diversos clientes. Oferecemos suporte completo para adaptação às normas IFRS, além de serviços de auditoria independente, educação continuada, consultorias tributária e financeira, e assessoria em operações de M&A. Para quaisquer dúvidas ou esclarecimentos, entre em contato conosco.
Autoria de Remerson Galindo
Sócio-diretor de Auditoria Independente
BLB Auditores e Consultores