Em 2022, a Lei Complementar (LC) nº 190/2022 foi publicada com o objetivo de regulamentar a cobrança do Difal (como é conhecido o diferencial de alíquotas) proveniente das saídas interestaduais de mercadorias destinadas ao consumidor final não contribuinte do ICMS, pacificando, assim, as diversas controvérsias relacionadas ao tema. No entanto, a publicação da referida legislação abriu caminho para um novo cenário de discussões, desta vez referindo-se à aplicação dos princípios constitucionais da anterioridade anual e nonagesimal, como veremos a seguir.
Contextualizando os fatos
Com o advento da Emenda Constitucional (EC) nº 87/2015, foram alterados os incisos VII e VIII, do § 2º do art. 155 da Constituição Federal, acrescentando à redação originária a hipótese de recolhimento do diferencial de alíquotas devido pelo remetente de mercadoria ou serviço, quando o destinatário final localizado em outro estado não fosse contribuinte do imposto. Sendo assim, para traçar os procedimentos a serem adotados pelos contribuintes, foi publicado o Convênio nº 93/2015, celebrado no âmbito do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz).
Esse ato foi objeto das primeiras discussões relacionadas ao tema, visto que o instrumento adequado para regulamentar a matéria seria a Lei Complementar, conforme disposto pelos artigos 146, incisos I e II, e 155, inciso XI, alíneas a, d e i, da Constituição Federal.
Após a propositura de diversas ações judiciais discutindo a constitucionalidade do referido dispositivo legal, o Supremo Tribunal Federal (STF) proferiu entendimento favorável ao contribuinte, no sentido de que a competência normativa para a regulamentação do assunto caberia exclusivamente à Lei Complementar. Assim, com o intuito de retomar a cobrança do Difal previsto pela EC nº 87/2015, o Projeto de Lei nº 32/2021 foi elaborado e posteriormente convertido na Lei Complementar nº 190/2022. Essa última foi publicada no Diário Oficial da União em 05 de janeiro de 2022 e será abordada mais detalhadamente adiante.
Produção de efeitos da Lei Complementar nº 190/2022
A partir de sua publicação, os estados e o Distrito Federal começaram a se mobilizar para iniciar a cobrança do Difal ainda em 2022, dando início aos debates sobre a violação dos princípios da anterioridade.
De acordo com esses princípios, dois requisitos temporais devem ser observados para o início da cobrança de um tributo, sendo eles: a anterioridade anual e a nonagesimal, conforme previsto no art. 150, inciso III, c da Constituição Federal:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
[…]III – cobrar tributos:
[…]b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou;
c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b;
Em outras palavras, a anterioridade anual determina que a lei que institui ou aumenta um tributo passe a produzir seus efeitos somente no exercício ou no ano seguinte ao de sua publicação.
Já no que se refere à anterioridade nonagesimal, essa requer que a cobrança de um tributo obedeça ao prazo mínimo de 90 (noventa) dias, a contar da publicação da lei que o instituiu ou o majorou.
Portanto, ambos esses princípios representam uma limitação ao poder de tributação de um dado estado, ao mesmo tempo em que conferem um direito fundamental ao contribuinte. Isso porque os objetivos principais da norma são inibir a arbitrariedade estatal e conceder ao contribuinte tempo hábil para planejar o seu custeio.
É importante frisar que o cumprimento desses dispositivos deve ser cumulativo, aplicando-se primeiro à anterioridade anual, e, em seguida, à nonagesimal. Isso se deve à possibilidade de publicação de uma lei ao final de um exercício financeiro, caso em que é preciso observar o período mínimo de 90 (noventa) dias.
Levando isso em consideração, ocorre que a maioria dos estados optou por efetuar a cobrança do imposto a partir de abril de 2022, ou seja, 90 dias após a publicação da lei complementar, sob o argumento de que as perdas de arrecadação lhes causariam grande impacto financeiro.
Início do julgamento sobre a cobrança do Difal no STF
Com base nos fundamentos supracitados, os contribuintes entraram com ações judiciais argumentando que a aplicação imediata da cobrança do Difal violaria os direitos assegurados pela Constituição Federal. Os Tribunais de Justiça, por sua vez, negaram vários pedidos de liminares, de modo que muitas decisões favoráveis ao contribuinte foram suspensas devido aos requerimentos de suspensão de segurança formulados pelos estados.
Esse mecanismo, ainda que de uso restrito, permite aos tribunais suspender os efeitos das decisões proferidas em desfavor do ente público quando ameaçarem lesionar a ordem, a saúde, a economia e a segurança pública. Todavia, essa disputa parece estar longe de se encerrar, cabendo uma análise cuidadosa sobre a questão de mérito, em vez de apenas considerar o ponto de vista relacionado aos cofres públicos.
Como resultado, foram movidas pelos contribuintes as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 7066 e 7075, buscando a suspensão dos efeitos da LC nº 190/22. Em sentido contrário, os estados do Alagoas e do Ceará ingressaram com as ADIs 7070 e 7078. Dessa maneira, em setembro de 2022, deu-se início ao julgamento para analisar e deliberar sobre a matéria, com o voto do ministro relator Alexandre de Moraes, que entendeu pela aplicação imediata da cobrança do Difal, sendo essa decisão favorável ao Fisco.
Divergências de posicionamento
O relator, ministro Alexandre de Moraes, julgou válida a cobrança do Difal ainda em 2022, pautado no entendimento de que a lei complementar não instituiu nem majorou qualquer tributo. Afinal, os objetivos dessa lei seriam apenas regulamentar um assunto preexistente, que trata da alteração de destinação do produto da arrecadação.
Esse argumento também foi utilizado pelos ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes, que defenderam a cobrança do tributo com início em 2022, acrescentando a exigência de observação dos termos fixados pela lei (noventa dias contados da publicação).
Já o ministro Edson Fachin foi divergente, alegando que o referido dispositivo instituiu uma nova relação jurídico-tributária ao dispor sobre aspectos temporais e quantitativos do fato gerador, além da sujeição tributária ativa. Desse modo, o ministro defendeu a aplicação de ambos os princípios da anterioridade, partindo da interpretação de que o princípio da noventena tem por objetivo reforçar a anterioridade do exercício, considerando incabível a aplicação isolada das regras.
O processo de votação foi acompanhado pelos ministros Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, André Mendonça e Rosa Weber. Embora esse cenário tenha proporcionado expectativas positivas para os contribuintes, houve pedido de destaque pela ministra Rosa Weber, que interrompeu o julgamento e reiniciou o placar da votação. Sendo assim, esse assunto ficou suscetível a alterações devido à pressão efetuada pelos estados.
Decisão final: como ficou a cobrança do Difal
No julgamento finalizado no último dia 29 de novembro de 2023, no plenário físico do STF, prevaleceu a posição do relator, o ministro Alexandre de Moraes. O magistrado concluiu que não se aplica ao caso o prazo da anterioridade anual, na medida em que a lei complementar não teria criado ou aumentado o tributo, mas apenas estabelecido a regra de repartição de arrecadação tributária. Entretanto, foi definido que o princípio da noventena deveria ser respeitado, uma vez que garante maior previsibilidade ao contribuinte.
Desse modo, os estados poderão cobrar o Difal do consumidor final não contribuinte a partir de 5 de abril de 2022. Isso significa que os contribuintes que não tiverem recolhido o diferencial de alíquota nas vendas a consumidor final a partir de abril de 2022 poderão ser autuados.
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Autoria de Gabriela Costa e Lais Faustino, com revisão de Pedro Magalhães
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