Objetivo da provisão para distrato
Principalmente em um ambiente econômico instável, as estimativas reconhecidas nas demonstrações financeiras devem ser revisadas periodicamente, isso devido ao impacto que podem gerar, por exemplo, a partir de desistências nas aquisições por parte dos clientes.
No ambiente das Incorporações Imobiliárias esse evento é reconhecido como distrato, que ocorre quando o cliente solicita o cancelamento do contrato feito com a incorporadora e solicita seus haveres antecipados no período de construção do empreendimento.
Dito isso, é necessário que as incorporadoras monitorem, perante sua carteira ativa de clientes, as possibilidades de eventos de distrato, antecipando esse registro na contabilidade, preparando os interessados nas demonstrações financeiras da entidade sobre as incertezas quanto à entrada dos fluxos de caixa futuros.
Somente as empresas de incorporação imobiliária devem reconhecer provisão para distrato?
A resposta é não.
Qualquer entidade que tenha celebrado com seu cliente um contrato de promessa de compra e venda de um bem, sendo esse contrato reconhecido como receita mediante transferência contínua de controle (ver IFRS 15 e CPC 47 neste blog), o mesmo deve ser identificado quanto às possíveis incertezas de entrada de fluxos de caixa.
Como funciona na prática o reconhecimento de uma incerteza de entrada de fluxos de caixa para provisionamento do distrato?
Assim como qualquer outra estimativa, essa deve ser observada por eventos passados e possibilidades de ocorrência futura, que pode estar atrelada a diversos fatores: economia – micro e macro ambiente –, taxas de juros de longo prazo disponibilizadas pelas instituições financeiras, sucessão de ocorrência de atrasos dos promitentes compradores de imóveis etc.
Suponhamos que a Empresa X possua em sua carteira de clientes ativos 100 promitentes compradores de imóveis, sendo que no macro ambiente estamos vivenciando uma desestabilidade econômica financeira motivada por uma pandemia. Essa empresa começa a observar que 20% (20 clientes) foram fortemente afetados pela economia tendo suas receitas diminuídas e, consequentemente, não conseguem mais honrar com seus compromissos contratados no passado iniciando atrasos nos pagamentos para a entidade.
Neste momento, a administração da Empresa X monitorando sua carteira ativa observa que 20% (20 clientes) estão gerando incertezas quanto à possível entrada de fluxo de caixa para a entidade.
Nesse exemplo, a Empresa X está construindo um empreendimento imobiliário no qual solicita 40% do pagamento do imóvel no período de construção e os outros 60% o cliente deve liquidar na entrega do produto, seja com recurso próprio ou buscando financiamento imobiliário no mercado financeiro (mais comum). Até o momento a Empresa X já evoluiu em sua obra 50% de construção, sendo reconhecido, consequentemente, 50% da receita do contrato com o cliente.
A administração da Empresa X deve utilizar de seu julgamento com base nas estimativas de possíveis distratos a ocorrer desses clientes, pois, não necessariamente os 20 clientes irão destratar. Pode ser que dentre esses 20 clientes 2 já tenham antecipado 85% do valor do imóvel, faltando apenas 15% para liquidação e, no entanto, apresentem dificuldade financeira para liquidação dos valores remanescentes.
Para esses 2 clientes é mais razoável a incerteza de que a entidade não irá, ou irá com dificuldade, receber os 15% que lhe resta. Neste caso é necessário o reconhecimento das Perdas Estimadas em Créditos de Liquidação Duvidosa (PECLD).
Para os demais clientes, a administração da Empresa X identificou incertezas nos fluxos de caixa para a entidade e sua provisão para distrato se faz necessária.
Para o exemplo, vamos utilizar da Lei 13.786 de 27 de dezembro de 2018, que disciplina sobre a resolução do contrato por inadimplemento do adquirente de unidade imobiliária em incorporação imobiliária e em parcelamento de solo urbano (Lei do distrato).
Como dito anteriormente, a entidade deve provisionar os possíveis efeitos futuros mediante à estimativa atual, no caso os 18 clientes, e a administração deve estornar as receitas e custos reconhecidos destes clientes, reconhecer a retenção de multa por distrato e provisionar os valores a serem devolvidos.
Na prática e seguindo o Ofício Circular da CVM/SNC/SEP 02/2018 ficaria assim:
REGISTROS CONTÁBEIS | |
Ajuste de receita | |
D – Distratos – estorno receita | (i) |
C – Clientes | (ii) |
C – Receita – indenização distrato | (iii) |
C – Provisão distrato | (iv) |
Ajuste de custo/estoque | |
D – Estoque – reversão custo distrato | (i) |
C – Reversão para estoque (estoque) | (ii) |
Fonte: site da CVM – Oficio-Circular da CVM/SNC/SEP 02/2018
Ajustes na receita:
- Estornar a totalidade da receita reconhecida até o momento (50% do contrato no exemplo);
- Provisionar os valores a receber em sua totalidade de clientes (promitentes compradores de imóveis);
- Reconhecer a receita pela multa contratual por retenção/indenização do contrato (Lei 13.786);
- Reconhecer o valor a devolver ao cliente no passivo circulante (Provisão distrato).
Ajustes no custo/estoque:
- Estornar a totalidade do custo reconhecido até o momento (custo incorrido da unidade, correspondente a 50% do custo orçado neste exemplo);
- Reverter o custo para o estoque.
Observe que quando a administração efetua esses estornos na contabilidade o efeito contábil nas demonstrações do resultado é a margem de lucro bruta (Receita líquida – Custos) da unidade que está sendo estornada e a receita por indenização/multa pelo distrato da unidade imobiliária.
Conclusão
Vimos neste artigo que é imprescindível que as estimativas voltadas para a provisão para distrato sejam revisadas periodicamente pela administração da empresa. Principalmente em ambientes de instabilidades econômicas que atingem diretamente os recebíveis da entidade, esta deve antecipar os eventos por meio de estimativas e disponibilizá-las aos usuários das demonstrações financeiras.
A falta de contabilização da provisão para distrato pode distorcer drasticamente as informações financeiras disponibilizadas pela entidade podendo trazer possíveis questionamentos, uma vez que há um rígido acompanhamento na divulgação dessas informações, principalmente por parte da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) no caso das empresas listadas, bem como pelas instituições financeiras que avaliam e acompanham as empresas que fazem captação de recurso principalmente para viabilização dos empreendimentos.
A equipe do Grupo BLB Brasil é especialista nas aplicações das IFRS, com experiências práticas em diversos clientes, oferecendo todo suporte necessário para adaptação às normas contábeis internacionais e inclusive nas áreas: auditoria independente, consultorias tributária e trabalhista.
Paulo Henrique Barcelos
Gerente de Auditoria Independente do Grupo BLB Brasil
Conteúdo muito interessante, parabéns!
Obrigada pelo artigo de qualidade