Confira neste post o panorama sobre o ICMS, seu embasamento legal e a questão da vez: materiais intermediários são bens de consumo?
Disposições gerais sobre o ICMS
O Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS) é um tributo de competência dos estados e do Distrito Federal, previsto no inciso II do artigo 155 da Constituição de 1988, cuja característica mais marcante é a famigerada não cumulatividade. Essa, por sua vez, é considerada um método de apuração de tributo, segundo o qual o “exato valor do imposto cobrado na operação anterior […] servirá de crédito ao adquirente para descontar o imposto devido por ele (adquirente) na revenda da mercadoria, ou em outras atividades tributáveis pelo ICMS”[1].
O referido método encontra previsão constitucional no artigo 155, § 2º, inciso I[2] da Carta Magna de 1988 e está legalmente estabelecido no artigo 19 da Lei Complementar nº 87/1996 (Lei Kandir)[3]. Ele representa, além de uma estratégia econômica destinada a impedir tributação em cascata que muito oneraria as mercadorias no final da cadeia de consumo, um instrumento por meio do qual os contribuintes desse imposto conseguem reduzir legitimamente os seus passivos tributários.
Isso significa que uma boa gestão tributária no âmbito do ICMS demanda máximo aproveitamento do método da não cumulatividade. Nesse sentido, cabe ao contribuinte ficar atento às aquisições de mercadorias que ensejem apropriação de créditos, a fim de reduzir as suas despesas tributárias e otimizar, assim, a sua atividade empresarial.
Tendo isso em vista, a Lei Complementar nº 87/1996, responsável por estabelecer regras gerais relativas ao ICMS, prevê no artigo 20 que:
Art. 20. […] é assegurado ao sujeito passivo o direito de creditar-se do imposto anteriormente cobrado em operações de que tenha resultado a entrada de mercadoria, real ou simbólica, no estabelecimento, inclusive a destinada ao seu uso ou consumo ou ao ativo permanente, ou o recebimento de serviços de transporte interestadual e intermunicipal ou de comunicação.
Embora o dispositivo supracitado denote certa amplitude no tocante aos creditamentos de ICMS, outras normas estabelecidas pela própria Lei Complementar nº 87/1996 acabam por dificultar a identificação das aquisições que efetivamente permitem o exercício deste direito. É o caso, por exemplo, do § 1º do referido artigo 20, cujo teor dispõe que “não dão direito a crédito as entradas de mercadorias ou utilização de serviços resultantes de operações ou prestações isentas ou não tributadas, ou que se refiram a mercadorias ou serviços alheios à atividade do estabelecimento”.
É possível citar ainda, como outro exemplo nesse sentido, a limitação temporal – a qual será abordada mais adiante no texto – fixada pela Lei Kandir (inciso I do artigo 33) em relação ao creditamento decorrente da aquisição de mercadorias destinadas ao uso ou ao consumo do estabelecimento, de modo que, frequentemente, por conta da complexidade da legislação tributária brasileira, emergem dúvidas sobre quais aquisições permitem a apropriação de créditos de ICMS.
Considerando esse contexto e visando munir o contribuinte de informações que o auxiliem no aprimoramento da gestão tributária, o presente artigo versará sobre a apropriação de créditos de ICMS na aquisição dos chamados materiais intermediários, tema acerca do qual os Fiscos estaduais seguem relutantes e que será, em breve, pacificado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), conforme se verá nos tópicos a seguir.
Creditamento de ICMS sobre aquisições de materiais intermediários. É possível?
A matéria sob análise está, basicamente, pautada na discussão sobre o enquadramento ou não dos materiais intermediários no conceito de bens de uso e consumo, uma vez que esses, conforme superficialmente mencionado acima, não permitem a apropriação de créditos de ICMS por conta de uma limitação temporal que vem sendo estendida desde que entrou em vigor a Lei Kandir.
Com efeito, embora o artigo 20 da Lei Kandir preveja expressamente a possibilidade de apropriação dos créditos de mercadorias adquiridas para fins de uso ou consumo, juntamente com ele, no mesmo diploma legal, foi estipulado o inciso I do artigo 33, cujo escopo foi postergar para 1º de janeiro de 1998 a possiblidade de apropriação de créditos na aquisição de mercadorias dessa natureza.
Desde então, o governo federal colocou em vigor sucessivas leis complementares para prorrogar indefinidamente o direito dos contribuintes de se apropriarem dos créditos referentes às mercadorias destinadas ao uso e ao consumo. Assim, a Lei Complementar nº 92/1997 prorrogou o exercício desse direito para 1º de janeiro do ano 2000; a Lei Complementar nº 99/1999 prorrogou para 1o de janeiro de 2003; a Lei Complementar nº 114/2002 prorrogou para 1o de janeiro de 2007; a Lei Complementar nº 122/2006 prorrogou para 1o de janeiro de 2011; a Lei Complementar nº 138/2010 prorrogou para 1o de janeiro de 2020 e, atualmente, vige a prorrogação veiculada pela Lei Complementar nº 171/2019, que perdurará até 1º de janeiro de 2033.
A prorrogação instituída pela Lei Complementar nº 171/2019, basicamente, tornou definitiva a impossibilidade de apropriação de créditos de ICMS na aquisição de bens de uso e consumo. Isso porque, em virtude da eventual aprovação da reforma tributária veiculada pela Proposta de Emenda à Constituição nº 45/2019, esse imposto será extinto em 2033, ou seja, no exato ano em que o contribuinte poderia passar a tomar créditos nessas operações (ou no qual, provavelmente, haveria nova prorrogação).
Logo, a aquisição de mercadorias enquadradas no conceito de bens de uso e consumo definitivamente não permite a apropriação, na forma de crédito, dos valores de ICMS embutidos no valor desses produtos. Por esse motivo, a controvérsia sobre o assunto aqui tratado recai no conceito de bens de uso e consumo, cujo alcance sofre intensas tentativas de extensão pelo Fisco, a fim de impossibilitar que o contribuinte se aproprie dos créditos na aquisição de mercadorias que sequer se enquadram nesse conceito, como é o caso dos materiais intermediários.
Enquanto vigorava o Convênio ICMS nº 66/1988 do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), o conceito de bens de uso e consumo abrangia todos os materiais que não sofriam consumo integral e imediato no processo produtivo:
Art. 31. Não implicará crédito para compensação com o montante do imposto devido nas operações seguintes:
[…]III – A entrada de mercadorias ou produtos que, utilizados no processo industrial, não sejam consumidos ou não integrem o produto final na condição de elemento indispensável a sua composição.
Contudo, posta em vigência a Lei Kandir, o critério de consumo imediato e integral foi substituído pela imprescindibilidade que o material adquirido possui em relação ao processo produtivo praticado pelo contribuinte. Isso é o que se depreende do § 1º do artigo 20 do referido diploma legal, quando esse veda créditos referentes à entrada de “mercadorias ou serviços alheios à atividade do estabelecimento”.
No estado de São Paulo, por meio das Decisões Normativas CAT 2/82 e CAT 01/2001, o Fisco manifestou o entendimento de que, para ser caracterizada como material secundário (intermediário), determinada mercadoria deve ser integral e instantaneamente consumida durante o processo industrial propriamente dito, sem se integrar fisicamente ao produto fabricado. Além disso, tal entendimento considera como material de uso ou consumo a mercadoria que não for utilizada na comercialização ou a que não for empregada para a integração no produto ou para o consumo no respectivo processo de industrialização.
Ao atrelar a possibilidade de apropriação de créditos à relação que determinada mercadoria possui com a atividade do estabelecimento, instituiu-se nova regra, segundo a qual é irrelevante o fato de o bem sob análise não integrar o produto final ou não ser consumido durante o processo produtivo. Esse é o entendimento da 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, registrado em acórdãos como o que julgou o Agravo Interno no Recurso Especial nº 1.800.817/SP:
“Enquanto vigorou o Convênio ICMS n. 66/1988 do Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ), o direito de crédito estava restrito aos produtos intermediários que eram consumidos imediata e integralmente no processo industrial ou que integravam a composição do produto final.
[…]Ocorre que a LC n. 87/1996 modificou esse cenário normativo ao ampliar significativamente as hipóteses de creditamento de ICMS e permitir o aproveitamento dos créditos referentes à aquisição de quaisquer produtos intermediários, desde que comprovada a necessidade de utilização destes para a realização do objeto social (atividade-fim) da contribuinte.
[…]Tem-se, assim, que a forma (integrante ou não do produto final) e o tempo de duração (imediato ou prolongado) do consumo do produto intermediário no exercício da atividade empresarial não mais infirmam o direito ao creditamento do ICMS, o qual, portanto, também deve ser reconhecido em relação às mercadorias que, por sua duração estimada, necessitam de reposição periódica para o correto funcionamento da matriz produtiva.”
A compreensão da 1ª Turma do STJ sobre tal matéria nos parece adequada, haja vista que, conforme perspicazmente pontuado por Adolpho Bergamini, “não há nas normas regentes do ICMS qualquer vinculação à caracterização de determinado bem como produto intermediário a seu eventual desgaste imediato em razão do contato com o bem em fabricação”[4].
A despeito de ser muito coerente o raciocínio explicitado acima, ainda não há harmonia na 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça sobre esse tema, pois a 2ª Turma da Corte possui um entendimento diverso, no seguinte sentido: “para que os materiais intermediários sejam considerados insumos e gerem direito ao creditamento, não basta que sejam indispensáveis ao processo produtivo. É necessário que sejam incorporados ao produto final, de forma a modificar a maneira como esse se apresenta” (AgInt no AREsp nº 1.631.502/PR, relator ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 10/8/2020, DJe de 18/8/2020).
A título explicativo, cabe esclarecer que a 1ª Seção do STJ é formada pelas 1ª e 2ª Turmas, às quais compete processar e julgar os feitos relativos a “tributos de modo geral, impostos, taxas, contribuições e empréstimos compulsórios”, de acordo com o artigo 9º, § 1º, inciso IX do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça.
A divergência entre a 1ª e a 2ª Turma do STJ sobre o conceito de materiais intermediários para fins da apuração do ICMS representa um impasse cuja solução deverá ser proposta pela 1ª Seção da Corte, ou seja, pela integralidade de ministros que compõem as referidas turmas, conforme artigo 12, parágrafo único, inciso I do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça.
Em 11 de outubro de 2023, a aludida Corte Superior, visando a pacificação dessa matéria, julgou os EAREsp nº 1.775.781/SP em favor dos contribuintes, garantindo-lhes o direito a apropriação de créditos de ICMS sobre materiais intermediários, os quais, para se enquadrarem nessa categoria, não precisam ser imediatamente consumidos no processo produtivo, nem tampouco se incorporar ao produto final, bastando que sejam indispensáveis ao exercício da atividade empresarial.
Com a pacificação dessa temática pela 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, formou-se um forte precedente sobre a possibilidade de apropriação dos créditos de ICMS quando da aquisição de mercadorias indispensáveis para o exercício da atividade empresarial, mesmo que elas não integrem o produto final e ainda que não sejam imediatamente consumidas no processo produtivo. Não obstante, torna-se imprescindível um estudo dos estabelecimentos submetidos à tributação de ICMS, vislumbrando uma possível otimização no tocante à tomada de créditos.
Conclusão
A matéria aqui abordada, considerando a pacificação trazida pela 1ª Seção do STJ, representa uma oportunidade de potencialização no que tange à apropriação de créditos de ICMS, razão pela qual é recomendável a adoção imediata das ações judiciais cabíveis, a fim de garantir aos contribuintes o creditamento referente ao maior período possível.
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Autoria de Heitor Cardoso
Advogado Contencioso Tributário
BLB Auditores e Consultores
Revisão de André Luiz Moiz
Consultor Tributário especialista em impostos indiretos
BLB Auditores e Consultores
[1] BERGAMINI, Adolpho. Revista dos Tribunais. Coleção Curso de Tributos Indiretos. Volume I. ICMS. 4.ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Thomson Reuters, 2020.
[2] “Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
[…] II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;
[…] § 2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:
I – será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal;”.
[3] “Art. 19. O imposto é não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou por outro Estado.”
[4] Op. Cit.