Diante da imensurável quantidade de publicações e questionamentos a respeito da Instrução Normativa RFB nº 2.219/2024, que tratava da fiscalização de operações financeiras – entre elas, o PIX e as transações com cartões de crédito – e foi objeto de análise aprofundada em outro artigo do nosso blog, surgiram inúmeras indagações sobre o direito dos cidadãos e das empresas brasileiras ao sigilo bancário.
Aproveitando esse contexto, o presente artigo busca esclarecer, sem a intenção de esgotar o debate sobre o tema, as disposições legais que versam sobre o sigilo bancário e o posicionamento atual do Supremo Tribunal Federal a respeito desse direito. Com base nessas informações, será possível finalmente responder à seguinte questão: o compartilhamento de transações financeiras com entidades arrecadatórias viola ou não o sigilo bancário?
O sigilo bancário no Brasil
Já de início, é preciso salientar que não há, na Constituição Federal de 1988, nenhum dispositivo legal que, de forma expressa e direta, institui o direito ao sigilo bancário. Contudo, inúmeras garantias dispostas no artigo 5º abarcam essa prerrogativa dos cidadãos e das empresas brasileiras, como veremos a seguir.
Começando pelo inciso X do artigo 5º, a Constituição Federal atesta a garantia de que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Considerando que as informações e as transações financeiras pertencem, sem sombra de dúvidas, à intimidade e à vida privada dos cidadãos, com amparo no referido inciso X do artigo 5º é possível sustentar a existência de um fundamento constitucional para o sigilo bancário.
Ainda no artigo 5º, há também o inciso XII, cujo teor dispõe que “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”. Assim como o anterior, esse dispositivo também embasa a existência do direito ao sigilo bancário, já que imputa, de forma ampla, a inviolabilidade sobre os dados.
Mais adiante no artigo 5º, encontra-se o recém adicionado inciso LXXIX: “é assegurado, nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais”. Ou seja, trata-se de mais um dispositivo que, de maneira ampla, aborda a proteção de dados, permitindo concluir que ele abrange as informações e as transações bancárias.
Além desses dispositivos mais genéricos que, embora não disponham expressamente sobre sigilo bancário, garantem a inviolabilidade da vida privada e dos dados dos cidadãos e das empresas brasileiras, a Constituição Federal estabelece, no artigo 192, que o sistema financeiro nacional será regulado por leis complementares. Vejamos:
Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram.
Uma das leis complementares que regula o sistema financeiro nacional recebeu o nº 105/2001 e destina-se a dispor especificamente “sobre o sigilo das operações de instituições financeiras”, conforme indicado na própria ementa desse diploma legal. Logo no seu primeiro artigo, a Lei Complementar nº 105/2001 estabelece que “as instituições financeiras conservarão sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados”, tratando-se de uma disposição legal expressa que garante, no Brasil, a proteção dos dados e das transações bancárias.
Embora a referida legislação, no § 4º do art. 1º, estipule a necessidade de decretar a quebra do sigilo bancário para a apuração de crimes contra a ordem tributária (como é o caso das omissões de receitas), há nela outras disposições que, em última instância, relativizam essa proteção. Tais disposições elencam algumas circunstâncias que não constituem violação a esse direito, e, portanto, não carecem de quebra do sigilo:
Art. 1o As instituições financeiras conservarão sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados.
[…]
- 3o Não constitui violação do dever de sigilo:
I – a troca de informações entre instituições financeiras, para fins cadastrais, inclusive por intermédio de centrais de risco, observadas as normas baixadas pelo Conselho Monetário Nacional e pelo Banco Central do Brasil;
II – o fornecimento de informações constantes de cadastro de emitentes de cheques sem provisão de fundos e de devedores inadimplentes, a entidades de proteção ao crédito, observadas as normas baixadas pelo Conselho Monetário Nacional e pelo Banco Central do Brasil;
III – o fornecimento das informações de que trata o § 2o do art. 11 da Lei no 9.311, de 24 de outubro de 1996;
IV – a comunicação, às autoridades competentes, da prática de ilícitos penais ou administrativos, abrangendo o fornecimento de informações sobre operações que envolvam recursos provenientes de qualquer prática criminosa;
V – a revelação de informações sigilosas com o consentimento expresso dos interessados;
VI – a prestação de informações nos termos e condições estabelecidos nos artigos 2o, 3o, 4o, 5o, 6o, 7o e 9 desta Lei Complementar.
VII – o fornecimento de dados financeiros e de pagamentos, relativos a operações de crédito e obrigações de pagamento adimplidas ou em andamento de pessoas naturais ou jurídicas, a gestores de bancos de dados, para formação de histórico de crédito, nos termos de lei específica.
Dentre os incisos do § 3º do supracitado artigo 1º da Lei Complementar nº 105/2001, merece destaque o III, que, basicamente, relativiza a proteção do sigilo bancário para fins de garantir a fiscalização do tributo conhecido como CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira), uma contribuição que há algum tempo deixou de ser cobrada no Brasil.
Esse é o primeiro indicativo expresso na Lei Complementar nº 105/2001 de que há, no ordenamento jurídico brasileiro, uma relativização do sigilo bancário para fins de fiscalização tributária. Porém, o maior fundamento nesse sentido está no artigo 5º da referida legislação, segundo o qual:
Art. 5º O Poder Executivo disciplinará, inclusive quanto à periodicidade e aos limites de valor, os critérios segundo os quais as instituições financeiras informarão à administração tributária da União, as operações financeiras efetuadas pelos usuários de seus serviços.
Visando regulamentar o artigo supracitado, o Poder Executivo emitiu o Decreto nº 4.489/2002, que estipula, no seu artigo 1º, que as instituições financeiras “devem prestar à Secretaria da Receita Federal do Ministério da Fazenda informações sobre as operações financeiras efetuadas pelos usuários de seus serviços”. Já o artigo 4º do referido decreto prevê que, no exercício dessa prestação de informações, podem ser desconsideradas aquelas “relativas a cada modalidade de operação financeira em que o montante global movimentado no mês seja inferior aos seguintes limites: I - para pessoas físicas, R$ 5.000,00 (cinco mil reais); II - para pessoas jurídicas, R$ 10.000,00 (dez mil reais)”.
Porém, o inciso I do artigo 5º do Decreto nº 4.489/2002 determina que “a Secretaria da Receita Federal poderá: I - alterar os limites de que trata o art. 4º”. Isso nos leva à primeira conclusão sobre a recém revogada Instrução Normativa RFB nº 2.219/2024: trata-se de uma medida que possuía amparo normativo e, por esse motivo, dificilmente seria derrubada pelo Poder Judiciário.
Em outras palavras, se não fosse a pressão popular em desfavor das polêmicas envolvendo a fiscalização do PIX, essa medida provavelmente seria ratificada pelo Poder Judiciário, pois há amparo normativo para disposições como as que constavam na Instrução Normativa RFB nº 2.219/2024.
Contudo, a revogação da referida instrução normativa não significa, de modo algum, que o Fisco federal não possui direito de acessar movimentações bancárias incompatíveis com a renda efetivamente declarada por determinado contribuinte.
Essa conclusão é corroborada pelo entendimento mais recente do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria discutida neste artigo, segundo o qual “não se caracteriza quebra de sigilo bancário o acesso, pelas autoridades fiscais, a dados de caráter sigiloso fornecidos por instituições financeiras e de pagamento, no interesse da arrecadação e fiscalização tributária” (ADI 7276, Relator(a): CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 09-09-2024, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 19-09-2024 PUBLIC 20-09-2024).
Desse modo, a menos que se adentre em questões mais subjetivas e conceituais a respeito do sigilo bancário e da sua extensão ideal, só é possível concluir que, no Brasil, o compartilhamento de transações financeiras com entidades arrecadatórias não constitui violação a esse direito.
Por esse motivo, tirando o fato de que a revogação da Instrução Normativa RFB nº 2.219/2024 figura como um exemplo da eficácia das pressões populares, essa medida não traz, na prática, maior proteção para as movimentações financeiras, pois o direito ao sigilo bancário não é, em última instância, oponível ao Fisco.
Por fim, é importante ressaltar que as transações financeiras informadas ao Fisco não são amplas e indiscriminadas. Isso porque, como o resquício de proteção ao sigilo bancário, a parte final do artigo 2º do Decreto nº 4.489/2002 estipula que tais dados se restringirão “a informes relacionados com a identificação dos titulares das operações e com os montantes globais mensalmente movimentados, relativos a cada usuário, vedada a inserção de qualquer elemento que permita identificar a sua origem ou a natureza dos gastos efetuados” (grifo nosso).
Portanto, pode-se resumir todo o contexto aqui abordado na afirmação de que, com ou sem a Instrução Normativa RFB nº 2.219/2024, todos os cidadãos e empresas brasileiras estão sujeitos a sofrer fiscalização do Estado sobre suas contas bancárias e transações financeiras, pois não há direito a sigilo quando está em jogo o interesse da arrecadação tributária.
Sigilo bancário no Brasil é legalmente amparado
Diante do que foi exposto, conclui-se que a proteção ao sigilo bancário existe no Brasil, estando amparada em dispositivos mais amplos e genéricos da Constituição Federal e nas disposições específicas da Lei Complementar nº 105/2001. No entanto, essa proteção não reflete um direito oponível ao Fisco, de modo que as transações financeiras podem ser monitoradas pelas entidades arrecadatórias da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios.
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Autoria de Heitor Fabbris e revisão técnica de Gabriela Cunha
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