A primeira variável a ser considerada em um planejamento sucessório é, geralmente, o regime de bens. É a partir de sua análise que será possível compreender a estrutura familiar no que tange aos bens existentes e à sua comunicabilidade entre diferentes gerações. Afinal, o regime de bens influencia diretamente em aspectos relacionados ao patrimônio familiar.
Levando isso em consideração, recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) proferiu uma nova interpretação de norma que diz respeito à necessidade do regime da separação obrigatória de bens para as pessoas maiores de 70 anos. Devido à importância desse tema, ao longo deste artigo abordaremos as questões legais que respaldam tal decisão e a importância do regime de bens no planejamento sucessório.
A escolha do regime de bens
Quando pensamos em regime de bens, estamos nos referindo às normas que regulam as relações patrimoniais entre os cônjuges, ou entre integrantes de outra estrutura familiar existente à qual se confira um regime de bens.
A priori, a regra em nosso ordenamento jurídico é a liberdade (autonomia privada) quanto à escolha de referido regime no casamento ou na união estável, por exemplo. Assim, “é lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver” (art. 1.639, Código Civil).
Inclusive, o instrumento utilizado para manifestar a referida escolha é o pacto antenupcial, em se tratando de casamento, e o contrato de convivência, em caso de união estável. Contudo, a norma civil apresenta algumas exceções a essa liberdade de escolha, dispostas na Lei nº 10.406 art. 1.641, sendo elas:
Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:
I – das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento;
II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos; (Redação dada pela Lei nº 12.344, de 2010)
III – de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial.
Atualmente, a exceção do inciso II, que se refere à “pessoa maior de 70 anos”, está relacionada a uma mudança jurisprudencial determinada pelo Supremo Tribunal Federal, a qual será abordada a seguir.
O regime de bens da pessoa maior de 70 anos
No início da vigência do atual Código Civil em 2002, a norma destacada acima (art. 1.641, II, Código Civil) previa o regime de separação obrigatória para pessoas acima de 60 anos. Em 2010, ocorreu uma modificação legislativa, aumentando, dessa forma, o limite para 70 anos. Assim, até fevereiro de 2024, caso uma pessoa com mais de setenta anos quisesse se casar ou contrair união estável, o regime de bens seria, necessariamente, o da separação obrigatória.
Sempre houve, porém, um posicionamento contrário à mencionada normativa. Afinal, indivíduos com mais de 70 anos estão em pleno gozo da sua capacidade, podendo, inclusive, exercer o cargo de Presidente da República, sem, contudo, ter a liberdade de escolher livremente o regime de bens de seu casamento/união estável. Trata-se, portanto, de uma situação diversa das retratadas nos demais incisos do art. 1.641.
O inciso I – “das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento” –, por exemplo, garante que um casal em processo de separação possa se casar novamente, ainda que o processo judicial não finalizado por completo. Levando isso em consideração, é comum, hoje em dia, que, em um processo no qual se discuta o divórcio e a separação dos bens, o juiz profira uma decisão parcial de mérito quanto à concessão do divórcio, continuando a demanda discutindo exclusivamente a partilha dos bens.
Dessa forma, se os cônjuges, ao se divorciarem, quiserem casar-se novamente, eles assim poderão proceder. Contudo o regime do novo casamento será, necessariamente, o da separação obrigatória de bens, para que não haja confusão patrimonial enquanto não manifestada a decisão judicial sobre a separação de bens do matrimônio anterior.
Assim, é possível compreender como legítima a intenção do legislador nesse caso, já que ainda não se chegou a uma conclusão quanto à divisão dos bens do primeiro casamento. Porém a imposição do regime da separação obrigatória não se mostrava igualmente legítima para indivíduos acima de 70 anos.
Tal qual como ocorre nos casos de matrimônio, é importante considerar que há uma súmula do Superior Tribunal de Justiça (STJ) garantindo a aplicação da referida norma também nas situações de união estável por pessoas com mais de setenta anos, conforme já mencionado anteriormente:
Súmula 655, STJ – Aplica-se à união estável contraída por septuagenário o regime da separação obrigatória de bens, comunicando-se os adquiridos na constância, quando comprovado o esforço comum.
Novo posicionamento do Supremo Tribunal Federal sobre o regime de bens
Em 1º de fevereiro de 2024, no julgamento do ARE 1.309.642 com repercussão geral (Tema 1.236), o STF reconheceu a primazia de vontade das partes maiores de 70 anos na escolha do regime de bens, desde que a manifestação da opção ocorra por escritura pública:
Nos casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoa maior de 70 anos, o regime de separação de bens previsto no artigo 1.641, II, do Código Civil, pode ser afastado por expressa manifestação de vontade das partes mediante escritura pública.
Levando isso em conta, cumpre destacar que, até o desenvolvimento deste artigo, não foi publicada a íntegra da decisão. Assim, serve-nos como subsídio o informativo resumido do STF, de maneira que acompanharemos as posteriores atualizações sobre esse assunto.
Com a decisão, deixa-se de considerar a condição de idoso(a) como causa de imposição do regime de separação obrigatória, lançando a norma do inciso II do art. 1.461 à categoria de normas dispositivas. Ou seja, trata-se daquelas diante das quais o particular pode optar por seguir outro caminho, no caso, o estabelecimento de regime diverso através de escritura pública, nos seguintes termos:
A limitação imposta pelo Código Civil, caso seja interpretada de forma absoluta, como norma cogente, importa em violação aos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade (CF/1988, arts. 1º, III, e 5º, caput). Isso porque a pessoa maior de 70 anos é plenamente capaz para o exercício de todos os atos da vida civil e para a livre disposição de seus bens. Portanto, a utilização exclusiva da idade como fator de desequiparação, além de ferir a autonomia da vontade, por ser desarrazoada, é prática vedada pelo art. 3º, IV, da Constituição Federal de 1988.
Nesse contexto, deve-se conferir interpretação conforme a Constituição ao referido artigo do Código Civil, a fim de que o seu sentido seja de norma dispositiva, e, desse modo, prevaleça apenas à falta de convenção em sentido diverso pelas partes, em que ambas estejam de acordo. Assim, trata-se de regime legal facultativo, que pode ser afastado pela manifestação de vontade dos envolvidos e cuja alteração, quando houver, produzirá efeitos patrimoniais apenas para o futuro.
Trata-se, assim, de uma decisão pautada nos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana, com efeitos ex nunc (prospectivos), de modo que valerá a determinação da publicação da decisão em diante. Com isso, não sofrerão incidência do novo posicionamento os regimes de bens de pessoas maiores de 70 anos – ato jurídico perfeito – firmados anteriormente ao novo posicionamento do STF.
Nesse contexto, caso uma pessoa maior de 70 anos tenha se casado sob o regime da separação obrigatória antes do novo posicionamento do STF e queira mudar o regime de bens, seguindo a lógica dos demais dispositivos legais, ela provavelmente terá que solicitar a mudança judicialmente. No entanto, essa é mais uma das informações que aguardamos confirmar na íntegra da decisão.
Reflexo da decisão do tema 1.236 nas sociedades firmadas entre cônjuges
A decisão em questão também gera reflexos no que diz respeito à contratação de sociedade por determinados cônjuges. Isso significa que a lei civil permite que cônjuges possam contratar sociedade entre si, desde que não estejam inseridos em dois regimes de bens específicos (art. 977, Código Civil), quais sejam: a) regime da comunhão universal e b) regime da separação obrigatória de bens.
Art. 977. Faculta-se aos cônjuges contratar sociedade, entre si ou com terceiros, desde que não tenham casado no regime da comunhão universal de bens, ou no da separação obrigatória.
Aqui nos interessa o segundo caso. De fato, a normativa que proíbe a contratação de sociedade por cônjuges casados no regime da separação obrigatória tem por objetivo assegurar que não formem qualquer vínculo patrimonial, ou comunhão de bens, por mecanismo diverso, uma vez que poderiam constituir uma sociedade, por exemplo, como alternativa ao regime de bens imposto legalmente.
Até a decisão do STF, os indivíduos com mais de 70 anos que se casassem não poderiam contratar sociedade entre si, uma vez que a eles era imposto, de maneira absoluta, o regime da separação obrigatória de bens. Contudo, com o novo posicionamento da Suprema Corte, torna-se possível a contratação de sociedade por cônjuges maiores de 70 anos, desde que haja a opção de regime de bens diverso do da separação obrigatória e da comunhão universal.
Assim, os cônjuges que se enquadram nas hipóteses dos incisos I e III do art. 1.614 continuam subordinados à norma do art. 977, ou seja, proibidos de contratar sociedade entre si. Por fim, a decisão do STF é de grande importância na medida em que privilegia a autonomia da vontade, aqui refletida na escolha do regime de bens de casamento/união estável. Nesse sentido, é importante ter uma visão crítica a respeito, em especial na elaboração de um planejamento patrimonial e sucessório.
O Grupo BLB possui equipe especializada na estruturação de planejamentos sucessórios, atuando no detalhe em todas as questões envolvidas.
Autoria de Bruno Chiarella e revisão de Liz Azevedo
Consultoria Societária e Patrimonial
BLB Auditores e Consultores