É de público saber que o mundo, Brasil incluído, vem enfrentando uma crise sanitária bastante grave, devido ao Covid-19. Há algumas semanas a pergunta que pairava era “se vamos ser atingidos por ela”, com poucos dias a pergunta passou a ser “quando sentiremos o impacto?” e agora a grande questão é “como mitigar esse impacto?”. Bem, a primeira questão que precisamos compreender é que nossa vida não irá mudar, ela já mudou.
Essa concepção traria, efetivamente e em algum momento, alterações na forma de se prestar serviços, produzir bens e riquezas, justamente para possibilitar aos motores do mundo, quais sejam os pequenos, médios e grandes empreendedores, a continuidade de seu funcionamento.
Ao passo que a maioria da população está, compreensivelmente, focada em apenas manter sua saúde, os mesmos motores que citei acima precisam se preocupar com outra coisa: como possibilitar que essa maioria consiga fazer isso?
Agora, mais que nunca, o inciso III do artigo 170 da Constituição Federal tem seu sentido exposto, nu, aos olhos de quem o interpreta. A função social da empresa, em tempos de resguardo e acautelamento, é também de manutenção da ordem social.
Dentre várias medidas tomadas, hoje comentaremos uma das mais recentes, a Medida Provisória 927; editada pelo Governo Federal com fulcro em auxiliar os empreendedores brasileiros a cumprir os papéis que sempre cumpriram, mas que agora precisam de ajustes.
Em resumo, a MP em questão dispõe sobre as medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6 de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do Covid-19, e para isso aborda regras específicas para oito áreas ligadas ao trabalho e ao emprego.
Veja você que as normas alteradas, na realidade, não se prestam a alterar o regime de trabalho e emprego, nem alterar garantias, e muito menos as estender, mas apenas adequar o sistema vigente para que os empregos possam ser mantidos, enquanto os empreendedores não sejam, nem durante e nem ao fim da crise, penalizados por qualquer adaptação necessária na forma de exercício de suas atividades durante a mesma. As áreas em comento são:
- o teletrabalho;
- a antecipação de férias individuais;
- a concessão de férias coletivas;
- o aproveitamento e a antecipação de feriados;
- o banco de horas;
- a suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho;
- o direcionamento do trabalhador para qualificação; e
- o diferimento do recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS.
Com a finalidade de sermos mais didáticos com relação a essas alterações, colocaremos nossas observações e resumo em formato de tópicos, facilitando a leitura. Como são várias mudanças e algumas com efeitos colaterais relativamente extensos, não podemos prometer um texto exatamente curto, mas sim, certamente, didático.
1 – O teletrabalho
O comumente chamado “home office”, ou “trabalho em casa” é uma das formas mais eficientes de conter o avanço da doença e, por isso, é a primeira medida abordada pela Medida Provisória 927.
Com a alteração os empregadores poderão converter os regimes de trabalho presencial de seus colaboradores em regimes de teletrabalho/trabalho à distância, sem configurar, no entanto, jornada externa (prevista no artigo 62 da CLT), ou seja, continuará sendo considerada jornada interna, mas excepcionalmente cumprida fora das dependências da empresa (total ou parcialmente).
Para que possam converter esses regimes, os empregadores não precisarão informar sindicatos nem recorrer a qualquer tipo de deliberação que não seja a própria (do empregador), bastando formalizar um contrato escrito em até 30 dias com seus colaboradores, tratando dessa conversão de regime.
Nesse mesmo instrumento pode ser pactuada uma ajuda de custo pela infraestrutura (água, energia elétrica e internet, por exemplo), para que esse custo da operação não seja absorvido pelo empregado; além de poder ser pactuado o comodato (do empregador para o colaborador) de equipamentos que possam ser necessários à realização das atividades.
Cabe frisar, no entanto, que, salvo disposição contrária em convenções ou acordos coletivos, o tempo de uso de aplicativos para comunicação (WhatsApp, Skype, Messenger etc.) não será considerado tempo de serviço, não integrando jornada.
Todas as disposições que citamos valem, inclusive, para estagiários e aprendizes. Nenhuma das regras válidas aos operadores de telemarketing se aplicam aos demais trabalhadores, mesmo que em teletrabalho.
2 – A antecipação de férias
O empregador poderá antecipar as férias de seus colaboradores, unilateralmente, apenas bastando que o colaborador em questão seja notificado com antecedência mínima de 48 horas.
Esse mesmo prazo serve para as notificações de suspensão de férias ou licenças não remuneradas dos profissionais da saúde, ou daqueles que desempenham funções essenciais (de acordo com os critérios de essencialidade do Governo, relativamente ao estado de calamidade pública, que em linhas gerais são profissionais da saúde, profissionais de limpeza urbana, profissionais de transporte de cargas, profissionais de mercados, farmácias e postos de combustível etc.).
Caso as férias sejam antecipadas, não poderão ser por período inferior a cinco dias corridos, mas podem ser concedidas ao colaborador mesmo que ainda não possua período aquisitivo normal – inclusive o mesmo vale para antecipação de períodos de férias futuros, mediante contrato escrito entre empregador e colaborador.
Durante o período da calamidade, o terço adicional de férias devido, poderá ser pago até a data limite de pagamento do 13º Salário – o que deve aliviar um pouco o caixa dos empreendedores. Adicionalmente, esse valor (o terço adicional de férias) poderá ser convertido em abono pecuniário (vender férias), também mediante acordo escrito entre as partes.
Independentemente, todo pagamento de férias nesse período de calamidade poderá ser realizado até o quinto dia útil do mês subsequente ao do início do gozo – o que também traz um pouco mais de fôlego ao empregador.
Por fim, na hipótese de dispensa do colaborador, deverá o empregador pagar, além das verbas rescisórias normais, os valores que ainda não houverem sido adimplidos relativamente a férias.
3 – Concessão de férias coletivas
Facilitando os procedimentos de férias coletivas, além de dispensar os empregadores de precisarem notificar o Ministério da Economia e os sindicatos, conforme preconiza o art. 139 da CLT, os empregadores poderão conceder as férias coletivas sem precisar levar em conta o limite máximo de férias anuais, nem o limite mínimo de dias corridos. Bastando que, para a concessão, sejam os colaboradores notificados com antecedência mínima de 48 horas.
4 – Aproveitamento e antecipação de feriados
Relativamente aos feriados não religiosos, bastando que haja notificação padrão de 48 horas de antecedência, os empregadores poderão antecipar o gozo desses feriados, inclusive podendo utilizar os mesmos para compensação (ou seja, abatimento) de saldo de banco de horas de seus colaboradores. No caso de feriados religiosos, o mesmo poderá ser aplicado, mas dependerá da anuência do colaborador em acordo individual escrito.
5 – Banco de horas
Enquanto durar a calamidade, além de poder interromper suas atividades, os empregadores poderão constituir um regime especial de banco de horas, controlando essas horas em favor do empregador ou do colaborador, bastando que para isso haja um acordo individual por escrito, ou mesmo acordo coletivo.
Um facilitador dessa medida é que a compensação desse banco de horas especial deverá ser realizada em dezoito meses, contados apenas depois do fim do estado de calamidade pública.
A forma, basicamente, que essa compensação ocorrerá será por prorrogação de jornada, sem exceder as dez horas diárias, e a compensação poderá ser deliberada unilateralmente pelo empregador, independentemente de haver convenção ou acordo (individual ou coletivo).
6 – Suspensão de exigências administrativas em segurança do trabalho
São duas searas abordadas sobre este tema na Medida Provisória 927. A primeira diz respeito a questões mais práticas, e a outra diz respeito a questões menos práticas (mas igualmente importantes).
Relativamente às questões mais práticas, temos a questão de exames e ASOs. Várias atividades demandam a consecução de exames periódicos. Durante o estado de calamidade pública, todos, à exceção do exame demissional, estão suspensos (e veja bem, não disse dispensados, mas sim suspensos – isso porque os mesmos deverão ser realizados até sessenta dias após o término do estado de calamidade pública). Mas isso não deixando de atentar à responsabilidade de atuação do médico coordenador do PCMSO, que se este entender que a prorrogação dos exames poderá incorrer em prejuízos mais severos, terá como obrigação informar ao empregador, orientando a realização normal desse exame.
Excepcionalmente, ao exame demissional (sim, temos uma exceção à exceção), este poderá ser dispensado (agora sim, é dispensa mesmo), caso o último ASO desse colaborador esteja datado de até cento e oitenta dias da data da demissão.
Por fim, no que tange os treinamentos obrigatórios (CIPA e afins), os mesmos ficam suspensos enquanto durar o estado de calamidade também, devendo ser realizados até noventa dias após o término do estado de calamidade – mas isso apenas para a modalidade presencial, pois se houver possibilidade de realização do treinamento via online, assim se pode realizar. Além disso, as eleições de CIPA podem ser suspensas e a comissão atual pode ser mantida.
7 – Direcionamento do trabalhador para qualificação
Uma das mais importantes medidas trazidas pela Medida Provisória 927, sem dúvidas, haja vistas que o empregador poderá suspender o contrato de trabalho por até quatro meses (que é o que se estima minimamente acerca da duração do estado de calamidade pública), para que o colaborador com o contrato de trabalho suspenso possa se capacitar com cursos e treinamentos à distância, fornecidos pelo empregador, podendo inclusive ser pactuada uma ajuda compensatória mensal ao colaborador durante o período da suspensão (observando ainda que, ocorrendo ou não essa ajuda, o empregador não será obrigado a fornecer a bolsa-qualificação, prevista no art. 476-A da CLT), e que não integrará salário para fins trabalhistas nem previdenciários.
Um facilitador ainda maior se dá pela dispensa da participação de sindicatos, bastando que seja realizado acordo individual ou acordo com grupos de colaboradores, e que a aludida suspensão seja anotada em CTPS (carteira de trabalho).
Cabem dois alertas: o primeiro é que caso não sejam ministrados cursos ou treinamentos, a suspensão fica descaracterizada e o empregador deverá pagar todos os salários e seus encargos, como se não houvesse suspenso o contrato (além de ficar sujeito a sanções trabalhistas e previdenciárias). O segundo alerta é que, na data de publicação deste artigo, que ocorre exatamente um dia após a publicação da Medida Provisória 927, a Presidência do Brasil está para revogar as disposições deste item, naquilo que falamos sobre suspensão de contratos de trabalho, portanto, existe a possibilidade deste recurso, até agora válido, amanhã (dia 24/03/2020) não estaria mais vigente.
Todavia, conforme manifestação da alta cúpula do Governo Federal, em coletiva de imprensa ocorrida na noite do dia 23/03/2020, tendo como porta-voz o secretário especial da Previdência Social, Bruno Bianco – data de publicação deste artigo – fora revelada a intenção final da administração, relativamente ao recurso da suspensão contratual trabalhista.
O dispositivo em comento fora demasiadamente mal interpretado como se fosse a perda do emprego pelos trabalhadores que participassem desse instituto jurídico; a verdade, porém, é que a Medida Provisória 947 de 2020 é um instrumento estrutural que altera a dinâmica originária da CLT para os assuntos naquela abordados, e a intenção do Governo Federal é de edição de outra Medida Provisória (que ocorreria independentemente de revogar ou não o artigo 18 da Medida Provisória 947), mas esta com caráter orçamentário, prevendo intervenção do Estado em possível auxílio financeiro aos trabalhadores que, tendo seus contratos suspensos por até quatro meses, poderiam contar com o amparo do governo.
Dessa maneira, como houve a revogação do instituto da suspensão contratual trabalhista, produto da pressão popular motivada (como dito anteriormente) por má interpretação de um texto que, convenhamos, estava bastante claro logo inicialmente, os próximos passos do Governo Federal serão a inserção desse mecanismo de suspensão contratual trabalhista na segunda Medida Provisória do plano, que terá majoritariamente um caráter orçamentário, juntamente com as medidas orçamentárias inerentes ao possível auxílio financeiro para efetiva implementação dessa modalidade de manutenção dos contratos de trabalho.
Em linguagem de domingo, apesar de revogada na Medida Provisória 947, o instituto da suspensão contratual trabalhista, como previsto na atual MP de caráter estrutural, será um dos objetos de nova Medida Provisória, retornando com brevidade a viger conjuntamente a medidas de caráter orçamentário complementares às deliberações da Medida Provisória 947.
8 – Diferimento do recolhimento do FGTS
Outra medida bastante importante e que trará mais fôlego aos empregadores é esta. Isso pois, independentemente do número de empregados, de regime de tributação, de natureza jurídica, de ramo de atividade, ou mesmo de adesão prévia, os empregadores poderão deixar de recolher (sob modalidade de suspensão da exigibilidade) os valores de contribuição ao FGTS de seus colaboradores, relativos às competências de março, abril e maio de 2020 (que seriam recolhidas nos meses de abril, maio e junho, respectivamente).
Esses valores suspensos poderão ser parcelados, sem acréscimos de multa nem demais encargos, a partir do mês de julho, em seis parcelas mensais, vincendas em todo dia sete.
Para realizar gozar desse benefício, basta que o empregador, apesar de não recolher o FGTS, informe em suas declarações, até dia 20 de junho, o valor devido. Tal ato importará em confissão de dívida sobre o valor declarado, mas esse mesmo valor gozará dos benefícios citados anteriormente (poder ser parcelado, sem encargos).
Caso não sejam declarados, os valores de FGTS serão considerados dívidas previdenciárias e trabalhistas comuns, sujeitas a multas e outros encargos.
Uma observação importante é que, caso haja rescisão de contrato, a suspensão em questão não será aplicada, devendo o empregador recolher normalmente os valores correspondentes ao FGTS do colaborador cujo contrato fora rescindido, apenas sem incidência da multa de atualização prevista no artigo 22 da lei 8.036 de 1990.
Por fim, cabe dizer que, caso o empregador decida por participar desse parcelamento especial do FGTS, e eventualmente venha a inadimplir suas parcelas, o débito passará a ser tratado como débito trabalhista e previdenciário comum (com multa, juros, bloqueio de CND etc.).
9 – Outras disposições importantes da Medida Provisória 927
9.1 Hora extra na jornada 12×36: os estabelecimentos de saúde poderão prorrogar as jornadas 12×36 (doze horas de trabalho por trinta e seis de descanso), nos termos do art. 61 da CLT, sem que haja qualquer penalidade administrativa, podendo inclusive adotar escalas complementares entre a décima terceira e vigésima quarta hora do intervalo interjornada, com a mesma proteção contra penalidades. As horas extras poderão ser compensadas, no mesmo regime especial de banco de horas, em até dezoito meses contados do término do estado de calamidade pública.
9.2 Suspensão de prazos processuais de FGTS: durante o período de cento e oitenta dias, contados do dia vinte e dois de março de 2020, ficam suspensos os prazos processuais administrativos do FGTS (relativamente a apresentação de defesas e recursos).
9.3 Contaminação por Covid-19 e acidente de trabalho: salvo comprovação de nexo causal, não será considerado acidente de trabalho (ocupacional) caso haja contaminação do colaborador pelo coronavírus (Covid-19).
9.4 Prorrogação de acordos e convenções coletivas: a critério do empregador, os acordos e convenções vencidos ou vincendos em até cento e oitenta dias, contados do dia vinte e dois de março de 2020, poderão ser prorrogados por até noventa dias.
9.5 Alteração no modus operandi Fiscal: durante o mesmo período de cento e oitenta dias, contados de vinte e dois de março de 2020, os Auditores do Trabalho e do Ministério da Economia atuarão apenas como orientadores, não mais fiscalizando ativamente, salvo apenas nos casos de falta de registro de empregados, via denúncia; situações de risco grave ou iminente; ocorrência de acidente fatal; e trabalho escravo, ou trabalho infantil.
9.6 Antecipação do abono anual: ao beneficiário da previdência social que, durante este ano, tenha recebido auxílio-doença, auxílio-acidente ou aposentadoria, pensão por morte ou auxílio-reclusão será efetuado em duas parcelas, excepcionalmente, nas competências de abril e em maio.
Enfim, são várias alterações que, sistematicamente influenciam e muito em como trabalhamos e trabalharemos durante o período de estado de calamidade pública. Sabemos que é um texto técnico, mas o procuramos trazer mais próximo do entendimento de todos. A qualquer dúvida ou questão, obviamente, você sempre poderá contar com o apoio de nossos profissionais, especialistas em assuntos trabalhistas, previdenciários e tributários.
Luiz Felipe Baggio
Consultor Jurídico Especialista em Matéria Trabalhista pela BLB Brasil Auditores e Consultores
Parabéns pelo texto e a forma didática.
Muito bom a abordagem.
Parabéns
Muito bom o texto, especialmente, pela linguagem didática, mesmo sendo escrito por profissional da área jurídica. Só achei desnecessária a ferrenha defesa do art. 18 da MP, pois, creio que o Governo “meteu os pés, pelas mãos”, não devia ter incluído esse artigo agora e sim, somente, na próxima MP, pois cria uma insegurança muito grande. Bastante, apenas, informar: “empresários, nós estamos trabalhando em tal medida, mas estamos estudando ainda os impactos no Orçamento, no que diz respeito a ajuda do Governo para manter a renda do trabalhador”
Meus parabens pelo texto.