O objetivo desse artigo não é definir nada. Para sermos bem honestos, esta é uma exposição que tem como foco muito mais comentar sobre nossas crenças no futuro das práticas tributárias e de efetivo alcance da fiscalização.
Isso não apenas com base no “mundo ideal” da dura lex, sed lex, mas também com base no empirismo do dia a dia, do estudo, dos debates com e entre colegas tributaristas. Enfim, para facilitar, o texto foi dividido em três partes: “Eu não sei do que se trata”, “Eu já sei do que se trata, mas quem estaria obrigado” e “Beleza, mas e aí? ”.
Creio que os itens sejam autoexplicativos, então, partamos para o texto:
“Eu não sei do que se trata a nova DPP… vamos do zero!”
No fim do ano de 2016 foram regulamentadas mais duas obrigações de natureza acessória, dentro do sistema tributário brasileiro: a DPP (Declaração País-a-País, instituída pela IN RFB 1.681/2016) e o CRS (Common Reporting Standard, instituído pela IN RFB 1.680/2016).
Os deveres instrumentais citados surgem como um passo marcante à coesão das informações fiscais ao longo do globo, ao menos com relação ao Brasil e os cossignatários da Convenção sobre Assistência Mútua Administrativa em Matéria Tributária.
A despeito das Instruções Normativas citadas terem surgido somente no fim do ano de 2016, o Decreto 8.842/2016, que promulgou o texto da Convenção, data do dia 29 de agosto do mesmo ano.
Dessa maneira, dadas as proporções de tempo e densidade da matéria, podemos dizer que muito já foi escrito sobre os objetivos e possíveis práticas futuras do Fisco pátrio, no caso de todas as 15 ações propostas na Convenção serem exitosas e de pleno aproveitamento à onda fiscalizatória.
O objetivo não é pontuar cada uma dessas ações, mas sim tratar das obrigações acessórias recentemente aprimoradas e renovadas pelas Instruções Normativas citadas. Antes, porém, de a observarmos, cabe dizer que cada uma dessas 15 ações está contemplada no Decreto 8.842/2016, com explícita previsão legal para sua institucionalização e exigibilidade – tal como ocorrera com os institutos sobre os quais aqui iremos comentar.
No caso de existir sucursal ou empresas do mesmo grupo econômico no exterior, hoje existe a obrigatoriedade de o estabelecimento pátrio informar, por sua Escrituração Contábil Fiscal (ECF), breves dados referentes a elas. Esses dados, como qual a atividade exercida pelo estabelecimento no estrangeiro ou sua receita, complementam outras fontes de informação que o Fisco possui (como o SISCOMEX e o SISCOSERV, por exemplo).
Todavia, tais informações são bastante incompletas e, por suas brechas, deixam escapar práticas estruturadas de elisão, quando não, evasão fiscal.
A ineficiência da fiscalização sobre operações ocorridas no estrangeiro, ou relacionadas com o estrangeiro, aliada à morosidade na percepção e compartilhamento de informações fiscais com outros países (a qual tornava impraticável realizar verificações concisas de operações ligadas à personalidades estrangeiras, informadas pelo contribuinte brasileiro), gerou a necessidade de se conhecer mais a fundo as características do grupo multinacional.
Exatamente dessa necessidade, não apenas brasileira, mas de todos os signatários da Convenção, firmou-se a tarefa de melhor compartilhar informações dos contribuintes através da criação de duas declarações – que aqui no Brasil nomeadas por DPP e CRS, são elas complementos da ECF e da e-Financeira, respectivamente.
Ok, já sei do que se trata, mas quem estaria obrigado? Como funciona?
Nada melhor que começarmos este item com o rol das pessoas jurídicas obrigadas a apresentar a DPP. Este seleto grupo de entidades é composto por:
– Controladoras finais de um grupo multinacional, residentes no Brasil;
– Entidades integrantes de grupos multinacionais, residentes no Brasil, (1) cujo controlador final do grupo não esteja obrigado a entregar a DPP em sua jurisdição (país) de residência, (2) ou mesmo quando sua jurisdição não haja apresentado autoridade competente para administração dos dados da DPP, (3) ou quando da ocorrência de falhas sistêmicas da jurisdição de residência ao fornecer informações ao Fisco brasileiro.
Lembrando que, para ambos os casos, subsistirá a dispensa no caso de a receita total consolidada do grupo ser inferior a dois bilhões duzentos e sessenta milhões de reais ou setecentos e cinquenta milhões de euros ou, mesmo que superior, e caso a entidade integrante residente no Brasil não seja a controladora final do grupo, na eventualidade do próprio grupo haver nomeado uma entidade integrante cuja jurisdição tenha acordo firmado junto às autoridades competentes do Brasil, não possuindo nenhuma notificação de falha sistêmica, entregando periodicamente a DPP declarando ser substituta em nome do grupo ao qual pertence.
Com a obrigatoriedade e dispensa elaborados, cabe agora definir quais os três grupos de informação prestadas na DPP. Cada um desses três grupos irá ser configurado da seguinte maneira:
Informações agregadas por jurisdição na qual o grupo multinacional opera, relativas:
a) aos montantes de receitas total e das obtidas de partes relacionadas e não relacionadas;
b) ao lucro ou prejuízo antes do imposto sobre a renda;
c) ao imposto sobre a renda pago;
d) ao imposto sobre a renda devido;
e) ao capital social;
f) aos lucros acumulados;
g) ao número de empregados, trabalhadores e demais colaboradores;
h) aos ativos tangíveis diversos de caixa e equivalentes de caixa.
Identificação de cada entidade integrante do grupo multinacional, mediante a indicação:
a) da sua jurisdição de residência para fins tributários e, quando diferente desta, da jurisdição sob cujas leis a entidade integrante está estabelecida;
b) da natureza de suas principais atividades econômicas.
Informações em texto livre, para prestação de esclarecimentos adicionais, a critério do grupo multinacional.
Não é difícil percebermos que a substância das informações demandadas pelo Fisco é bem mais variada do que aquela que hoje se tem exigida, por meio dos deveres acessórios prestados pelos contribuintes.
Podemos dizer, inclusive, que mais até que a substância dessas informações, a velocidade e segurança com a qual elas chegarão ao conhecimento dos Fiscos pátrio e internacionais (os últimos, é claro, de países signatários da Convenção) será inédita, com possibilidades até então sui generis de dinamizar a fiscalização tributária e previdenciária, talvez até (um dia) integrando todo um conjunto maior de informações desses âmbitos, tornando menos tortuosa as relações de comércio e prestação de serviços internacionalmente.
Cabe lembrar, sem sombra de dúvidas, que caso a multinacional deixe de entregar a DPP, estando a ela obrigada, ela irá se sujeitar a uma multa de R$ 1.500, ou caso entregue a declaração com omissões, incorreções ou inexatidões, a multa passará para 3% do valor omitido, inexato ou incorreto (num mínimo de R$ 100,00).
“Beleza, mas e aí?”
E aí, meus caros, em virtude de tudo aquilo que conversamos, é natural que os comentários dos advogados tributaristas, contadores, auditores e consultores, em geral, estejam alinhados aos lógicos receios de duas principais ocorrências:
– Abuso do poder interpretativo normativo: Como não temos uma legislação “antielisão” no Brasil, quem garantiria a interpretação justa dos expedientes de planejamento tributário? A interpretação extensiva ou restritiva da norma, exclusivamente buscando o interesse do sujeito ativo da relação tributária é o que faz administrativamente a Receita Federal do Brasil, via de regra e justificada pelo interesse em fazê-lo. Os tementes deste tipo de evento, com toda a razão, afirmam que a falta de parâmetros legais de um planejamento tributário é o que dificulta a definição do mesmo como sendo abusivo ou lícito (o que é verdade, indiscutivelmente).
– Abuso do poder fiscalizatório: Retorne à parte em que destacamos o primeiro grupo de informações prestadas na DPP. Pois bem, caso liguemos os pontos nessa questão, não será dificultoso perceber que todas aquelas informações em seu conjunto podem ajudar a comprovar operações escusas (ou, se preferir, fraudulentas, simuladas, evasivas) – como a declaração de bens tangíveis, frente ao valor da operação realizada no período e à natureza da atividade desempenhada.
Qualquer um acharia estranho uma trading participante do grupo ter um valor imaterial de ativos tangíveis, mas servir de ponte numa espécie de operação triangular multimilionária.
Esta segunda preocupação, para mim a mais relevante, que pouco (ou nada) tem a ver com a interpretação (por parte do Fisco) da norma tributária em benefício do sujeito ativo, mas sim com o cuidado que os grupos multinacionais deverão passar a ter com a comprovação da substância econômica (motivo extratributário), pois essa exigência que sempre teve um caráter erga omnes (contra tudo e contra todos), agora é “pra valer” mesmo.
É básico do planejamento tributário que toda empresa tenha um motivo extratributário para existir, uma substância econômica de sua atividade, que não simplesmente redução de carga tributária, muitas vezes até, utilizando de artifícios ardis.
Deverão os grupos multinacionais passar a buscar dar maior substância às suas entidades integrantes, como criação de presença física de uma empresa, aumento do volume de operações, ou mesmo mudanças de estrutura que passem a justificar de maneira mais concreta as operações realizadas pela entidade em questão.
Cabendo, portanto, nosso final aparte quanto a esses receios, posso afirmar por experiência que, hoje, ambos os itens acima descritos são parcial e temporariamente infundados.
Talvez a médio prazo possamos realmente ver o Fisco brasileiro esbanjando seu longínquo alcance e conhecimento de tudo que ocorre nas operações com entidades multinacionais que aqui residam, mas esse momento não é o atual.
A Receita Federal tem problemas para cruzar simples informações obtidas de empresas 100% nacionais e, portanto, cujas operações lhe são potencialmente de conhecimento translúcido. Por mérito de exemplo, não se cruzam ainda (de forma automática) as informações constantes na ECF com as da DCTF.
É necessário o arcaico trabalho manual de conferência do sistema “Malha DCTF”. Não são validadas ainda (de forma automática) todas as informações constantes na EFD Contribuições com o DACON, por exemplo.
O que preciso transmitir é: se nem mesmo as operações puramente internas são validadas de forma automática, mas sim o saldo de sua totalidade num período, o que poderíamos dizer de operações internacionais? Ou mesmo fazer o complexo trabalho cognitivo de compreender uma rede de entidades multinacionais, que se desdobram em atividades econômicas para uma finalidade comum?
A DPP, bem como a CRS, tem potencial para iniciar uma revolução na globalização da informação fiscal, que pode se encerrar em até uma nova e mais acessível maneira de globalizar a economia. Todavia, esse tempo de áureo triunfo é hoje distante, longe do horizonte do Fisco brasileiro.
O que devem os grupos multinacionais fazer, caros amigos, certamente não é se preocupar agora com as possíveis interpretações do Fisco do que estão operando internacionalmente. Isso porque durante um certo tempo ainda, ele não saberá exatamente dizer o que estamos fazendo (muito menos de forma automatizada). O que os grupos multinacionais devem fazer, na realidade, é a revisão de seus negócios – desde a logística, até a parte tributária e aduaneira, trazendo substância econômica (alma e corpo de empresa) à sua entidade integrante.
A DPP é parte de um plano de quinze ações, muitas delas voltadas à regulação do Transfer Pricing (Preço de Transferência), dando combate à Erosão da Base Tributável e Transferência de Lucros, sendo coordenadas pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) com o principal objetivo de estudar medidas de combate à evasão e à elisão fiscal por meio da transferência artificial de lucros para países com baixa tributação. Não brinquemos com a fera, caríssimos, mas sejamos inteligentes: não se mata leão a pauladas.
Luiz Felipe Baggio
Divisão de Tributos
BLB Brasil Auditores e Consultores